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Nílson anda apressado pelo anel interior do Mineirão, tenso. O jogo já terminou, mas alguma emergência impede o estádio de ser evacuado. Anunciaram isso assim que o jogo terminou, mas Nílson não conseguiu entender o que foi dito, os alto-falantes eram péssimos. A confusão parece generalizada, todo mundo tentando usar o celular, sem sucesso. Muitos parecem desesperados com suas telas subitamente apagadas. O gringo havia sumido de vista ainda no primeiro tempo e só no final do jogo Nílson foi ler a mensagem alucinada do filho da puta, quinze minuto antes, falando para encontrá-lo IMEDIATAMENTE, sem dizer onde estava. E o seu celular em seguida desligou sozinho, antes de Nílson responder. O que nunca havia acontecido antes.

Eles haviam se encontrado na véspera, no bar de um hotel na rua do contorno, em Belo Horizonte. Um funcionário do hotel o chamou de Sr. Aaron, o que o fez se apresentar, em seguida, constrangido, como Timothy Aaron. Nílson ficou feliz de finalmente descobrir o nome daquela desgraça.

No hotel, Timothy não apresentou nenhuma informação nova, apenas reforçou sua impressão de que algo muito grave poderia acontecer no jogo. Nílson fingiu seriedade, mas estava rindo por dentro da paranoia ridícula. Ele ainda não sabia, no geral, o que achar da paranoia do Timothy. Havia prometido lhe entregar o inquérito da Polícia Federal, mas não entregou. Foi enrolado da parte de lá e hesitou em buscar pressão externa. Tampouco protocolou a aproximação de maneira apropriada no sistema interno da própria ABIN. Mesmo tendo confirmado o contato inicial com o departamento de estado, Nílson às vezes ainda temia que estivesse lidando com um charlatão, ou, quem sabe, com um ex-agente afastado por problema mentais. Mais uma papagaiada na ABIN e ele viveria o resto da sua vida como o café-com-leite da repartição.

Pensa em voltar para o estacionamento, onde tinham se encontrado horas antes, em uma zona de segurança duplamente reforçada. Mas não sabe se conseguirá chegar lá, tem gente acumulada em todo canto tentando sair e não estão deixando, as pessoas estão todas com uma cara de pavor, começando a se empurrar.

Nílson admite para si que até o final do primeiro tempo estava pensando muito mais no jogo do que na suposta ameaça. Ele, que não torcia tanto pra futebol tinha tempo, que tava puto com aquela Copa desde que foi anunciada, não conseguiu evitar aquele sentimento antigo, infantil, de vencer todo o mundo. Cagar na cabeça de italiano e argentino. Ele que não ia num estádio desde a infância se viu gritando o hino nacional (o hino nacional) como um doido. Estava trabalhando, oficialmente, mas era claro que todo mundo ali acabaria assistindo o jogo. Achou foi bom o sumiço de Timothy, para poder torcer tranquilo.

E aí veio a humilhação. Os gols infantis, como que de treino, sucedendo como replays ao vivo. E Nílson se arrependeu imediatamente de ter cedido àquele sentimento, sentindo aquela humilhação com um gosto ainda pior por estar ali na presença de estrangeiros, dos chefes das seguranças das delegações de outros países. Toda a tosqueira e a inferioridade do seu país esgarçada e devassada na frente de todo mundo. A vergonha e a raiva que ele sentiu de todos aqueles milionários todos no campo.

Foi só depois de engolir com dificuldade essa humilhação que ele se lembrou da suposta ameaça terrorista que pairava sobre o dia. E de algum jeito o clima ominoso daquela derrota humilhante passou a tornar a ameaça mais crível.

O primeiro sinal que fez Nílson começar a levar a historia a sério foi quando Tamires mencionou que Renato achava que tinha viajado no tempo, isso depois do Timothy ter lhe dito que um golpe mais ou menos nesse sentido estava sendo aplicado no Vale do Silício. Afinal, antes disso Nílson também já tinha ouvido um boato vago, num fórum, de que Renato estava de alguma forma conectado ao CABOL, o jogo no qual ele próprio havia se tornado viciado até ser pego jogando no trabalho (o que jamais aconteceria se ele tivesse algo para fazer durante o expediente, aliás). Mais especificamente, que um personagem muito importante no jogo, O COMEDIA, menos por ser um jogador de alto nível e mais pela performances e pegadinhas que pregava em vários servidores, gravadas e reproduzidas em plataformas de vídeo.

Se Renato de fato estiver envolvido nisso, se ele de fato achar que viajou no tempo, a conexão dele com essa história bizonha do Timothy de uma conspiração terrorista transnacional tornar-se-ia também mais crível. Absurdamente. Mas antes dele dizer algo a Timothy nesse sentido, viu aquela fita na UFOP com a apresentação maluca do Renato e percebeu que devia ser tudo só coincidência. Essa possibilidade parecia fazer mais sentido, para Nílson, do que imaginar Renato metido em algo tão técnico. Tão complicado. Por mais que fosse só um trambique, no fim das contas.

Ali no estádio o sentimento volta a ficar incerto. E ele não encontra de jeito nenhum a porta de acesso restrito pela qual tinha chegado ali mais cedo. Está num corredor interno de onde pode ver a reação de pessoas que chegam e saem das arquibancadas e camarotes. Quase todos nervosos, Nílson percebe, e agora como que de um pavor renovado e amplificado numa onda súbita. Ele nota que o céu escurece, embora não passe de cinco e pouco. Ele anda apressado pra fora do corredor para ver melhor o céu. Seu esfíncter trava.

O teto aberto do estádio está sendo tomado por revoadas gigantescas de pássaros. Tantos que tapam a luz do sol. E de tipos diferentes, em redemunhos vivos, furiosos e coordenados. O barulho rapidamente fica ensurdecedor. Ele nunca havia visto nada parecido, nem mesmo na fita famosa do Hitchcock, que ele conhecia bem.

Embaixo dos pássaros, a torcida ainda está acumulada e confusa. Nílson vê que o telão de repente é tomado por uma tela azul de erro, um ruído estridente soando nas caixas de som, a imagem em seguida piscando preta e aparecendo um texto preto e grosso em tela branca, como se numa transmissão pirata.

E que ele acabou, claro, lendo:

Daí que eles fizeram a cara da terra escurecer, e caiu uma chuva espessa-escura, uma que caiu dia e noite, os pequenos e grandes animais apareceram neles, suas caras foram esmagadas pelas pedras e as árvores, eles foram interpelados por todos os moedores de milho e as suas panelas, seus pratos e seus potes, seus cachorros e seus dechavadores. Quantas coisas eles tivessem, todos esmagaram seus rostos. Seus cachorros e seus perus falaram pra eles: Dor vocês nos causaram. Vocês nos comeram. Agora somos nós que vamos te comer.

Que porra era aquela? Antes que Nílson conseguisse digerir as frases estranhíssimas, outra coisa começa a passar no telão. Uns quarenta segundos de imagens sucedendo numa rapidez alucinante, de lixo a céu aberto, de gente amontoada em cadeia, políticos com guardanapo na cabeça, gente com a camisa da seleção na frente de um caveirão, adolescentes negros assassinados. O silêncio que desce é perturbador. Todo mundo tem os olhares fixos diante do telão. Um outro vídeo começa, agora mais estável.

O barulho dos pássaros morre de uma vez, como que desligado de um interruptor. Embora tenha gente chorando, tenha gente gritando aqui e ali, tenha gente cochichando entre si, o que desce no estádio é um silêncio.

A imagem, mal iluminada, parecia de uns bons anos atrás e feita por uma câmera barata. A data no canto era novembro de 2001. Abre num jovem magricelo de rosto comprido com cabelo crespo acumulando-se em tufos acima da testa e dos ombros. Nílson o reconhece imediatamente, mas sem acreditar no que está vendo. Camiseta apertada amarela do Roberto Carlos, uma cara faceira de sério, as mãos aprestadas numa mesa metálica vermelha dessas de marca de cerveja, velha e descascada. Ele se encurva todo pra direita de um jeito feminino antes de começar a falar:

— Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião. Quase todo milionário é um criminoso. A não ser o Romário e a Lauryn Hill. Todo bilionário é um monstro. Sem exceção. Talvez tenha chegado finalmente a hora derradeira de jantar os ricos, como o Tupac falou. São os verdadeiros inimigos de todos os povos da terra. Os ricos, não a espécie humana.

Ele ri histriônico por meio segundo, daí fecha a cara de novo abruptamente.

— A guerra de real não é nem com país, mais, não é nem mais com gente direito. Até porque bilionário não é gente, é uma patologia coletiva. A malha técnica dos homens já destruiu meio mundo e hoje é muito mais forte do que os homens que a fizeram. O capital é uma voragem. Os parasitas no topo da cadeia são só um acidente dessa voragem, sua água empoçada e pestilenta. Eles sentem o desejo de acumular mais e mais, de engolir tudo que é menor e disponível e eles acham que esse desejo é deles. Mas não é.

— O protocolo já foi implementado, ele corre sozinho a essa altura. Os megaorganismos corporativos competem pelos materiais que vão engolir e processar enquanto os hierofantes dos parasitas falam de boca cheia das decisões estratégicas que estão tomando. E a voragem aumenta com tudo que ela come. Não estamos falando de apetite, de tesão, do desejo de um corpo devorar outro, ou mesmo de se gastar e se destruir. O capital não tem corpo. Ele tem ritos e sacerdotes, ele opera forças maquínicas reais, ele distribui prazer para uns e dor para outros. Ele é a coisa mais concreta que existe, em sua abstração. Mas ele não tem corpo.

 — Os parasitas se divertem com seus jatos e ilhas gregas e vinhos franceses e com a sensação de exclusividade, um poder inimaginável de destruição sendo usado para os fins mais toscos, as festas mais feias, da gente mais podre que existe.

— O mundo se queima no piloto automático do desejo frito e refrito dos americanos, continuação direto-pra-TV do pesadelo interminável que foi o progresso europeu. Os dois maiores desastres que já aconteceram com essa terra. E que até hoje se orgulha abertamente de toda seu rastro de pilhagem e destruição. Aquilo que se costuma chamar de História. O mundo hoje não se organiza em países, ele é governado pela Monsanto, Nestlé, At&t, Exxon, Microsoft, GM, pelos bancos e grupos de interesse (uma voz robótica dublada por cima completa: Google e Facebook). O mundo todo, vacas e porcos, tios e tias, é escravizado pra servir meia dúzia.

— Esses são os nomes dos atuais senhores de Xibalba e não há nada mais importante do que saber os nomes dos demônios que nos governam. É quase sempre pelo nome que se captura e se é capturado. Os mestres reais desse mundo hoje são esses corpos de ações e os senhores de escravo têm, a maioria, nome e pessoa jurídica. Chamem seus xamãs, desenterrem os tratados de demonologia (voz robótica de novo: saiba criar uma rede, se ligue sempre que informação você tá cedendo em troca do quê).

Nílson percebe que os celulares das pessoas voltaram a funcionar. Muitos estão filmando o telão. O som está saindo muito mais claro do que antes, Nílson percebe, amplificado de uma maneira estranhamente equalizada e distinta, para um ambiente tão vasto e barulhento.

— Todos nossos meios de comunicação são acidentes da tecnologia militar. Quase todos nossos meios de revolta imagética fazem parte do mesmo império que a gente tenta desmontar. Tá tudo dominado tem décadas. Mas é justamente aí que a viravolta vira. Bem quando amarrar a corda bem apertado é que esses meios finalmente ganham a densidade apropriada, a massa crítica e se viram contra seus mestres.

— Uma rede se mede pela largura dos seus buracos, não só por sua extensão. Forças que vocês não controlam estão se sintonizando-se, podem ter certeza e não parece que elas terão a minha paciência. Isso não é uma ameaça. Longe de mim. É uma estimativa metereológica.

Faroun-white é faroun-devil. Como vocês podem ver. E só as deusas sabe o que não brota dessa Roma maior, mais danada e mais poderosa que tá caindo agora.

Ele entrelaça os dedos das mãos. A doidura já ultrajante dos olhos arregala ainda mais e se aprofunda, engata uma sétima marcha.

— Vocês não têm soberania onde a gente se agalera e os túneis tão sendo cavados debaixo dos seus pés. É nós que voa, bruxo, e a realidade que cês produziam em massa quieta agora já é essa sopa frita de alucicreize pronta pra abiogênese. A demônia natureza é muito, muito, muito, muito maior do que tua grelha imagina. Quando Gaia vier reclamar suas ofensas, cês não vão chegar nem a ouvir o grito, como com teus V-2 dantanho. Tuas fúrias só viravam eumênide só depois de muito parto, só, não era? Pois pronto. Pedra cantada tem quase duzentos anos por Tonhão dos Conselhos. Corta pra mim.

Ele se levanta, a cara ao mesmo tempo faceira e seríssima, ultrajada.

O sertão vai virar mar. O mar vai virar sertão. O sangue hade ir até a junta grossa.

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