95.

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Wellinton está na marginal Tietê a mais de cem por hora quando o celular começa a vibrar, furioso, no porta-copos. É a Cátia. Ele trava todo. Tudo menos ela, agora.

— WELLINTON, PORRA.

— Opa.

— Porra, mano. Quê que rolou ontem?

— Oi?

— QUÊ QUE ROLOU ONTEM? A Fabiana me ligou aqui desespe-

— Tá ruim a ligação, tou entrando num túnel. Me liga daqui vinte segundos.

Ela bufa como quem não acredita.

Tá bom.

Wellinton tinha que pensar. Ele tava com o corpo no porta-malas, não tinha mais volta. Lembra do gringo sem graça falando que lidaria com a garota. Em filme, ele sabe o que isso sempre quer dizer. Uma coisa era o coitado do cara morrer, foi acidente. Nem os gringos queriam aquilo. O que quer que eles fizessem agora também não mudaria isso, não adiantava nada. Cabou-se. Outra coisa era matarem a menina agora. Isso seria muito pior. A frase do gringo tava reverberando na sua cabeça há vinte minutos, mas uma parte dele tentava adiar uma decisão enquanto fosse possível, pra que não tivesse que tomar nenhuma decisão drástica.

Wellinton não saberia dizer se foi o medo de se ver responsável por outra morte ou se foi mais o pavor de imaginar a cara da Cátia descobrindo aquilo, cheia de raiva dele e com toda razão. Aquela cara tão linda. Retornou a ligação antes que mudasse de ideia.

— Então. A tua amiga tá em perigo. Onde que você tá?

— Como em perigo? CÊ TÁ LOUCO, MANO?

— Teve um acidente ontem. O Flávio morreu.

— Como assim? Caralho, Wellinton.

— Sério. Acidente. Rolou. Já foi. A máquina lá deu xabu. Os gringo me arrumaram uma porra duma máquina fuleira. Não foi culpa minha. Não foi, Cátia.

— A Fabiana me ligou agora falando que tava sem nada na casa, sem celular, sem dinheiro. Onde que ela tá?

— É rua Pedroso de Morais cinquenta e oito. Cinco oito. Pinheiro. Mas fala pra ela sair de lá imediatamente. Agora-agora mesmo. Eles vão matar ela, Cátia. Eu te juro que eu não sabia que eles eram ruim desse tanto. Eu juro.

Cátia desliga e retorna o número que ligou para ela minutos antes. Quando o telefone toca Fabiana está tentando enrolar uma toalha de mesa como saia. Ela pula ao longo do sofá para atendê-lo logo, na mesinha de canto.

— Cátia?

— Menina, falei com o Wellinton e ele falou pra você sair daí agora. Cê tá em perigo, Fabiana. É sério o bagulho.

— Como assim? A porta tá trancada.

— Porra, arromba, sei lá. Mas vaza daí. Você tá em Pinheiros. Rua Pedroso de Morais cinco oito. Eu vou arrumar um jeito de chegar aí.

— Eita, tou mesmo. Agora que tu falou eu lembrei. E o Flávio, cadê ele?

— Esquece o Flávio agora, só vaza daí. Entra na primeira lanchonete ou padaria aí perto que eu vou te caçar. Eu não tou tão longe.

Fabiana desliga o telefone e procura algo pesado na sala. Ela ainda não tava bem das ideias, as formas de tudo que ela encarava pareciam instáveis, tremendo. Tudo queria ser outra coisa além do que era de fato. Tudo estava onda estava e em volta também. Até as mãos dela pareciam indecisas quanto a isso de continuar obedecendo a sua vontade. Joga primeiro um livro enorme de arte (GIACOMETTI) no vidro que separa a sala do jardim, mas ele só faz bambear num estardalhaço, não quebra. Ela pega uma luminária metálica e bate a base contra o vidro com toda sua força, uma, duas vezes. Na terceira o vidro começa a trincar, bem quando ela ouve a porta da frente abrindo, o gringo sem graça (que ela reconhece como se de um abismo assim que vê) vem entrando e logo tirando do bolso uma pistola prateada.

Fabiana faz o último golpe que enfim estilhaça o vidro, mas o gringo sem graça aponta a arma e grita um HEY de filme, ridículo, apontando firme a arma, o que faz ela parar, tombando a luminária ao chão.

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