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Daonde que tava vindo aquela merda toda? Murilo quer mudar de assunto, mas não consegue pensar em nada mais leve para dizer. Eles geramente tinham tanta coisa pra falar um pro outro. Do nada Fábio começa a cantar com uma voz empostada, grave:

— Rir pra não cho – rar.

Murilo ri.

— Tu se sente super brasileiro, né, Fábio?

— Pô, sim. Que pergunta, assim, do nada. Tou no roda-viva de repente.

Murilo ri de novo e pergunta.

— Mas como que funciona? É um troço meio Mário de Andrade, meio Galvão Bueno?

— Ah, sei la, é meio isso, mesmo. Um troço bobão assim afetivo muito forte assim Brasil-zil. Bem assim mesmo. Mesmo sabendo que é um fazendão desgraçado com uma pá de gente pra moer, isso aqui.

— Tá. Mas por exemplo o Cartola.

— Hm. Top 5 serumano.

— Ele é um grande artista, claro. Mas o que torna ele tão expressivo pra tu é a figurinha lá dele.

— Ué, sim, talvez.

— Tu escuta e fica com essa coisa toda no coração, porque é um sambista das antigas, de raiz, preto, pobre.

— É a imagem dele, sim. Quê que tem? Igual o Tolstói, a Safo. Igual qualquer coisa. A imagem vem sempre embutida do resto. Do rastro.

— Não, né? Nem vem. Tem um exotismo de você nas suas circunstâncias indo atrás daquilo. É como branco rico escutando rap.

— Eu escuto rap todo dia. E eu sou mais branco e rico que bater em mãe.

— Eu sei. Eu também acho legal algumas coisas, mas tu não acha que é meio estranho alguém como tu consumir aquele negócio do mesmo jeito de alguém que se identifica de verdade com a parada?

— Como assim?

— Como que tu se sente quando eles falam de matar playboy, essas parada?

— Ah, eu acho massa.

— Mas tu entende que tu efetivamente curtir isso é curtir uma imagem de tu mesmo sendo morto?

— Claro né, mas eu me odeio mesmo, tá otimo pra todo mundo. Todo mundo ganha.

— Tá, mas não é meio óbvio que você escuta pra sentir menos culpa ou algo assim? Pra fingir que você tá do lado deles, quando você claramente não tá.

— Possivelmente, mas não só, ué. O mesmo pode ser dito de um ateu lendo Dante, sei lá. Cada um com suas fantasia.

— Sei lá, só acho meio ridículo.

— Boto fé. Ridículo acho que é mesmo.

A cara de Fábio entorta, ele começa a chorar e a reação de Murilo é de involuntariamente franzir o rosto, como alguém que não acredita que aquilo está acontecendo. Ele não tinha os instrumentos pra lidar com aquilo, ele mal conseguia se compreender efetivamente metido naquela situação. Claro que ele conseguia depreender de vários filmes que ele podia abraçar o amigo agora ou pelo menos falar um punhado de coisas minimamente positivas. Mas ele não conseguia achar uma única ação que parecesse adequada, definitiva. Tampouco era pequeno o medo de parecer gay, um pensamento que ele sabia que era profundamente tolo, mas cuja presença na sua cabeça parecia só redobrar depois dele notar pra si mesmo o tanto que era tolo.

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