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— Foi mal. Nada a ver eu falar isso.

— De boa, de buenas, de buenas noches. De buena vista internacional social club.

— Você tá falando esquisito, bicho.

— Eu sei. Essa é uma das coisas.

— Que coisas? Tu diz tipo sintomas?

— Não exatamente, mas tipo isso. Tá rolando um momento tenso agora, nos últimos dias. Não tou bem das ideia não.

— Como assim?

— Não sei. Não sei explicar, assim, mesmo. É uma crise aí sei lá, uma parada dessas. Crise de nervos. Colapso nervoso. Colepso nervioso. Já leu o Schreber? Lindo. Quer dizer. Se fosse um filme, saca. Seria lindo. Mas aconteceu, ele sofreu mesmo aquelas coisas. Não é brinquedo não. Doidura não tem graça não, Edileuza. Eu não saberia como descrever, na real, estou tentando arranjar um nome adequado com ajuda profissional há uns dez anos, ninguém consegue me dar um que me satisfaça. Então chame de Clóvis Bornay, de Ishmael, de Runpestilskchinchariol.

— Boto fé. Mas é tenso mesmo?

— Porra, muito tenso.

— Quão tenso?

— Tenso pra caralho. Como assim, tu quer um número?

— Foi mal, só quero entender com o que tamo lidando aqui. Tu sempre me pareceu tão tranqs. Super jazzys.

— Eu já fui em tudo que é psicanalista e terapeuta e o caralho, todo mundo me dá uma ajudinha, uma interfacezinha pra lidar com aquela parada, mas eles não acabam com ela, eles não chegam nem a lutar contra ela, de verdade. Mal chegam nos domínios dela, entende.

— Do jeito que você fala parece um demônio, né?

— É. Quando eu tinha uns doze anos eu pensava nela como quase literalmente aquele simbionte do Homem-Aranha, aquele bagulho negro que se pega na pele dele, tal.

— Mas então ele te dava poderes?

— Heh. Bem vindo a imaginação de um moleque inteligente, dramático e mimado como um pequeno rei chinês na dinastia Ming, sei lá.

— Boto fé.

— Nem sei o que acontecia na dinastia Ming.

— Eu tampouco.

— Mentira sua. Cê sabe de tudo que eu sei. Cê sabe quem é meu pai, não sabe?

— Sei.

— Então, tem a ver com essas parada. A noia. As noias.

— Hm.

— Eu penso nele morrendo todo dia.

— Eu também não gosto do meu pai, normal.

— É estranho ser filho de um dos caras mais odiáveis do país.

— Acho que a maioria das pessoas nem sabe quem ele é. Ainda mais fora do Goiás. Tem muita gente pra odiar no Brasil, bicho, serião. Galera tá cagando pra ele.

— Boto fé. Deve ser.

— E não é como se não tivesse suas vantagens, né? Vamo combinar.

O rosto de Fábio se acende, por um instante, com alguma expectativa.

— Claro. Mas eu sempre admito isso. E ou, vem cá. Eu tou querendo há um tempo te perguntar um negócio. Um negócio meio sério. Você não… O seu pai.

Ele não consegue terminar a frase. Fica olhando pro além.

— O quê? Quê que tem meu pai?

— Nada não. Esquece.

Ele parece cada vez mais tenso, olhando pro celular o tempo todo. Não tava tão tarde, uma e pouco.

— Eu tenho que ir. Volto hoje ainda pra Goiânia.

— Sério? Cê tá em condição de dirigir?

— De boa demais. De boaça. Até a gente chegar lá eu tou melhor. Tomo uma água e pronto. Xablauson. Tou acostumado a dirigir de madrugada. É só uma terça feira como qualquer outra.

— Hoje não é terça.

— Você entendeu.

Os dois caminham de volta até a 707, onde está estacionado o carro de Fábio. Em silêncio quase absoluto. Para distraí-lo e dissipar a onda ruim, Murilo conta pra ele a trama do Manuscrito encontrado em Saragoça, do Jan Potocki, o tanto que ele lembrava, inventando o que não lembra. Murilo parece muito animado para lê-lo. Ele se despede com um abraço muito forte que Murilo corresponde com os braços frouxos e o torso quase se recolhendo.

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