92.

<

— Lá na festa eu tava com uma galera das antigas com quem minha persona mais canastrona é motivo de assim muita alegria. Muito deleite. Eles me adoram, é uma merda. Mas um troço assim sem proporção. Tu não imagina. São uns caras com quem eu estudava na porra dum cursinho de inglês e de quem fui muito, muito bróderes quando tinha uns treze pra quatorze. Mudaram todos pra Brasília depois.

— Boto fé.

— Eles são meio nerds, tem uma vida muito quieta e me acham hiper doidão e extremo e aventureiro e absurdamente, absurdamente pegador (e pros padrões deles de fato eu sou praticamente um Renato Gaúcho, sem dúvida). Eu descobri a festa por uma amiga da minha namorada, trouxe eles aqui pra dar em cima duma garota. Idiotão. Eles tavam achando a casa da festa a coisa mais porralouca do mundo. Eu gosto deles, mas é muito cansativo performar esse personagem o tempo todo, já tava de saco cheio. Foi bom fugir.

Murilo ainda tinha a cara franzida, ele sabia, e não sabia até onde ela tinha sido registrada pelo amigo ou não.

Fábio tava com um sorriso fixo estranhamente puxado. Não era só que ele parecesse pouco convincente, o que para Murilo era bem comum (quase toda exultação tendia a parecer forçada para ele), mas era como se Fábio tivesse esquecido como que pessoas sorriam. Tinha no máximo um preparo chorado pra um gesto ali, se isso.

Murilo não mais sabia com quem ele estava falando.

— Por que você tá falando assim, Fábio?

— Assim como.

— Ah, sei lá, deixa, acho que é viagem minha.

— Não, uai, fala, assim como?

— Parece de desenho animado, sei lá, afetado, assim, cê fala assim sempre? Só te vi na câmera umas duas vezes.

— Eu tou meio histérico, eu sei, tou te falando, aconteceram umas paradas. Eu nem te falei o que tá rolando, né? Tre-ta, tre-ta, tre-tinha.

— Não, diz aí.

Fábio desconversa, muda de expressão.

— A minha mãe é meio japonesa e meio loira. Já te mostrei foto? Uma configuração muito própria, assim. Digo objetivamente. Nunca vi em atriz nenhuma. Ela até foi modelo, por um tempo, antes do meu pai casar com ela e encher muito o saco pra ela parar de trabalhar. Um negócio assim suspeito como ser modelo, que é quase eufemismo de meretriz, o babaca fala até hoje, pra tristeza dela. E ela foi mó bem-sucedida. Ganhava bem, embora tenha parado de viajar pouco depois deu nascer. Chegou a estar numas campanhas internacionais grandes de marca de perfume chique aí. Ela ainda tinha guardado dois comerciais que ela fez, em fita, e alguns dos ensaios, num livro enorme que ela mandou encadernar. É difícil pra mim ver minha mãe naquela imagem tão produzida, tão montada. Bonita pra caramba. Pra não dizer outras coisas. É uma foto bem boba, dela rindo, numa praia. Eu lembro de achar a propaganda pouco original, pouco criativa, como se de alguma forma isso me desapontasse.

— …

— Eu só cheguei uma vez um out-door com foto dela. Foi de uma campanha que durou um tempo inesperado, porque parece que começou a funcionar de maneira inesperada com algum demográfico específico que eles nem estavam tentando alcançar, exatamente. Não sei porque falei isso agora. É mentira. Ela foi modelo, sim, mas todo o resto que eu falei foi mentira.

Murilo ficou surpreso. Não soube nem o que responder.

— Na real muito do que eu te falei nesses e-mails era mentira. Eu não fui a várias daquelas viagens, não comi todas aquelas garotas. Algumas coisas eu pegava o começo e aumentava. Mas tudo tem um fundo de verdade

— ….

— Aconteceu um troço comigo, bicho, e eu tou tendo, sei lá, é estranho, uns problemas. Tá abrindo meio que umas partes da minha interface normal com as coisas, como que subdividindo tudo em abas e mais abas, desfolhando igual uma alcachofra infinita. Tem hora que parece que eu tou mais livre ou mais sei lá o quê mas aí é aba demais, também. Eu não consigo fazer nada. Eu só fico me desfolhando e desfolhando. Entende?

O sorriso de novo, falho, inconvincente. Parecendo involuntário. As sobrancelhas como que falhando, tremendo.

Murilo estava segurando um sorriso e fez algo como “hmmm”, num tom que era pra ser inquisitivo, meio brincando, mas depois de dito ele já não tinha tanta certeza se havia soado nesse sentido ou não. Ele sabia que não devia ser irônico, mas não conseguia segurar o impulso. Como se uma parte dele ainda suspeitasse que o amigo estivesse brincando, curtindo com a sua cara.

Alcachofra infinita. Bom nome de álbum.

>