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Os dois saem da festa e vão caminhando em direção ao eixão, atravessando a W3 vazia. Era muito estranho conversar com ele pessoalmente. Murilo estava acostumado a antecipar muito bem aquela pessoa, mas algo de importante mudava, ele via aquela voz como saindo daquela extensão tão alheia à sua, aquela presença extensiva de um corpo que ele não conhecia direito, que se mexia de um jeito todo próprio, a voz que saía como se de uma treva repleta de órgãos, um riso que ecoava e travava diferente do que ele lembrava, meio molhado e babado. Gengiva demais. Fábio era muito menos bonito ao vivo.

Murilo percebia agora que estava acostumado a tratar a voz do amigo como algo que emanasse de dentro da sua cabeça, um rebento da sua própria imaginação, mais um desdobramento da sua substância. Como todo o resto. E, no entanto, lá estava ele olhando para a quadra e rindo sozinho, com um jeito de andar inesperado, uma postura largada que ele não imaginava, um aperto de mão frouxo demais.

Faltava todo um acordo expressivo, um domínio de cadências em comum que facilitasse a interação ali entre os dois. Ele achava que já tinha isso perfeitamente instalado com Fábio, mas aparentemente só pra alguns meios. Não ao vivo.

E a possibilidade daquela ser a versão mais completa ou mais direta do que quer que o Fábio fosse no mundo, de Murilo estar todo esse tempo lidando apenas com um fantoche inautêntico que ele fazia de si mesmo, aquilo começou a lhe incomodar profundamente.

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