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DIÁRIO DE UM INICIANTE NO CABOL

Dia 3

Quem liderava a nossa caravana era um jogador que vinha do Amapá, chamado APOCALYPSO. Um mutante cinzento enorme, parecia uma tartaruga humanóide, forte como o avatar do meu sobrinho e todo pelado (com um pinto do tamanho da perna do meu avatar). E todo inteligente, também, neuropata, controlando mentalmente algumas ações de bots simples e jogadores de nível baixo e explodindo coisas à distância.

Ele anda montado numa anta mutante descomunal e não carrega nenhum item. Eu provavelmente demoraria uns dois dias batendo nele com meu pedaço de pau para conseguir matá-lo (e no entanto ele é só nível quarenta e cinco, nem chega a ser um jogador tão forte assim no esquema geral das coisas).

De vez em quando avatares bem fracos chegam atacando sozinhos a nossa caravana. Não dá pra entender se acham que vão conseguir alguma coisa. O APOCALYPSO geralmente explode sua cabeça antes que tenha conseguido causar qualquer dano apreciável. Eu e os outros jogadores de nível baixo saímos do caminhão, nos aproximamos da sua carcaça para coletar os seus itens, que nunca valem muito. Numa dessas eu consegui um facão e um boné do Vasco.

Eu ouvi dizerem que quase sempre que rola um ataque tolo assim é algum bot confuso, sobrevivente de alguma batalha ou hackeado pra sair andando a esmo.

Enquanto eu tentava entender isso, um dos dois do meu lado ficavam falando sobre bots corporativos que predam outros bots soltos por aí e formam mecha-bots enormes, cheio de partes, como aqueles robôzões de seriado japonês dos anos oitenta.

Todos repetindo uma mesma frase promocional (vendendo pílulas dietéticas ou alguma marca de cadeira gamer). Eu não entendia direito o que eram esses bots, aqueles que atacavam nossa caravana pareciam humanos normais, como muito avatares (alguns têm modificações, chifre, braços biônico, asa, umas coisas assim).

Os outros jogadores me contam também de uma lenda que começava a engrossar em todos os servidores. De um monstro que logo apareceria lá dentro, em breve, forçando os jogadores a se juntarem para proteger o seu pequeno universo persistente. A lenda começou a ser propagada por NPCs em todo canto, o que sugeriria que seria uma meganarrativa envolvendo todo o servidor principal.

Alguns nomes se repetiam nas conversas dos jogadores com uma frequência extraordinária, correntes como celebridades naquele mundo. Sarumão, Negodrama, <abertura.de.todos.os.santos>, A ELEGÂNCIA EM PESSOA, druidster, Zumbi, Skitcho, Paraíba Blade, Rasputona.

Contavam das aventuras deles, das suas habilidades específicas, armas modificadas. O tom era de uma admiração distante, quase idealizada. Eram como heróis para aquela galera, parecia.

Dia 4

Ontem passamos por Minas Gerais. As estradas são lindas, serras pixeladas nos longes, cidades pitorescas de beira de estrada, personagens com sotaque carregado (alguns são NPCs propondo aventuras, mas há uma horda de bots educativos chatérrimos que correm por todo lado só repetindo citações aleatórias do Guimarães Rosa).

Ontem paramos num bar-puteiro e eu fiquei um tempo conversando com um avatar de uma garota linda. Obviamente sei que um avatar de uma menina linda dificilmente significa uma garota linda por trás, mas não deixa de ser divertido. Só depois da terceira vez que ela repetiu uma mesma frase é que eu percebi que ela não era uma pessoa de verdade. Eu me senti bem burro, mas o meu sobrinho me explicou que no CABOL mesmo para jogadores experientes não é sempre fácil distinguir quem é bot, quem é NPC e quem é jogador de verdade.

— Essa é uma das paradas mais divertidas do jogo.

Eu ainda tenho dificuldade de entender como, exatamente, que isso pode ser divertido, mas tudo bem.

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