85.

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Tamires está lavando louça de fones de ouvido quando sente um toque no ombro. Convulsiona-se toda, derrubando a xícara na pia num estardalhaço de talheres. Era ela de novo, depois de três semanas sem aparecer nem dar notícia. Tudo sempre nos seus termos. A camisa velha esmaecida do Fugazi, as mechas lisas ao lado dos olhos agudos e fundos, a expressão toda tensa.

— Ei, querida.

Porra, demonha.

— Foi mal. Mas dessa vez eu até bati. Você usa fones de ouvido cem por cento do seu tempo?

— Sempre chega assim, desse jeito. Caramba. Fantasma dum caralho.

— É meio emergência. Cadê o Renato?

— Pois é. Vazou de madrugada. Eu te mandei email naquele email. Tu não viu?

Ela faz uma cara de revoltada.

— Eu te falei, Tamires.

— Ué, queria o quê? Que eu amarrasse ele na cama? Eu fiquei toda dissimulada, chamando pra ver filme, os musical que ele gosta. Bandwagon. Jurava que ia funcionar. Ele jurou que tava com sono e que ia dormir, fiquei na sala a noite toda no computador zumbizando pra não deixar ele sair de fininho. De manhã só que fui ver que tinha saído pela janela. Levou um cacho de bananas, um rolo de papel alumínio e discriminou num papelzinho que deixou na cabeceira.

— Sabia. Depois eu te explico tudo, Tamis. Tão atrás dele. A PF e a ABIN. Ele não pode ir pro estádio de jeito nenhum.

— Pois é. Apareceu ontem o Nílson, aqui, um cara que a gente conhecia junto de BH. Dos vários amigos esquisitão do Renato dessa época. E que hoje é ABIN, tu imagina. Com um papo de que tão investigando o Renato pelos sequestros. Eu gelei, mas ele não percebeu. Acho. Ele não parecia ter nem ideia de que eu podia estar envolvida. E eu achei que seria novidade pra ti, mas pelo visto não era.

— O Renato não pode ir pro estádio de jeito nenhum, Tamires.

— Cê falou que ele tinha que ficar no jogo, que ele ia performar o monstrão antes do avatar da criatura aparecer no jogo. Quê que vai acontecer hoje, afinal?

— Você vai ver. Eu mesma só sei metade. Ele não precisa estar no jogo hoje, isso era só conversa pra manter ele aqui. O monstrão performa a si mesmo tranquilo. A merda é que escondi umas coisas do Renato e acho que ele agora não confia mais em mim.

— Ele não viu a criatura? Eu tava sem saber se podia conversar com ele ou não.

—Ele nem sabe que ela existe.

—Por que não?

— …

— Você não confia nele?

— Não é isso. Eu só fiquei com medo dele fazer algo troncho, sei lá. Tentar entrar no tubo, tocar nela. Contar pra todo mundo, começar uma religião. Você sabe, pô.

Tamires começa a rir muito, do seu jeito quieto, audível só no nariz fungando.

— Total. Renato super ia tentar transar com ela.

A outra também ri, finalmente.

— Aliás, eu tiro o fone de ouvido sim. Pra tomar banho e às vezes pra dormir.

— Mas não foi só isso. Eu admito que zoei um pouco com a cabeça dele. Vacilei.

— Como assim?

— Então.

Ela faz um sorrisinho sacana antes de contar.

— Eu queria entrar na cabeça de um cara específico lá na Califórnia, quando a gente foi, e uma amiga deu a ideia de como tentar chegar nele. O cara é completamente obcecado com o Império romano, com o Augusto, em particular. Daí a ideia da minha amiga era usar a tecnologia que a gente apanhou de realidade virtual imersiva e mascarar de outra coisa. Fingir que era uma tecnologia meio miraculosa de recuperar experiências do passado e tentar vender isso pra essa galera. Eu queria que o Renato vendesse o troço e pra isso eu mandei o caô pra ele mesmo. Um pouco como teste, até. Meio achando que ele não acreditaria, até. Mas acreditou. Ficou horas e horas usando a máquina, alucinando um bando de coisa da própria cabeça dele, misturada com o poder de concreção da máquina e achando que tava vivendo experiências reais do passado de outra pessoa, falando e entendendo grego, inglês elizabetano, iorubá, latim. A coisa é que, até onde eu entendo, a máquina acho que usa o maquinário neural de produção de sonho da pessoa misturado com nosso maquinário motor e sensorial bruto pra criar simulações tão vívidas quanto a realidade. E a imaginação do Renato é tão fértil e cheia de tranqueira que saiu voando na máquina. Eu botava um arquivo em branco pra gravar falando pra ele que era alguma coisa antiga desconhecida e ele voltava me falando que conversou com Sócrates, que transou com a Marisa Tomei enquanto Robert Downey Jr.. Eu gravei cento e doze experiências as mais absurdas e divertidas que cê pode imaginar, que agora tão em bibliotecas pessoais de alguns dos bilionários mais poderosos do planeta, que acreditam que são de fato recuperações do passado.

— Puta merda. Então foi isso, diaba.

Tamires dá um tapa na orelha da amiga.

— Ai, caramba. O quê?

— Ele tava todo-todo, esses dois dias que ele ficou aqui. Mais do que o normal. Bem mais. Mais do que na época do sítio. E umas horas que ele tava bêbado, falava umas coisas muito desconexas, uns comentários rápidos assim como se tivesse se lembrado duma vez que conversou com Spinoza, com Safo e não sei quem, e eu oi? Sem entender se era piada, se era o quê que era e ele só fazia um sorriso safado e desconversava.

— Pois é. Acho que eu vacilei mesmo. Mas ele vendeu o negócio tão bonito, cê não tem noção. Convenceu um tanto de bilionários e centimilionários a implantarem um troço estranhíssimo na nuca depois de quarenta minutos de papo e uma demonstração tecnológica bem qualquer coisa. Foi incrível.

— Porra, tu também, né? Chega cheia das magia miraculosa, dos ET orelhudo e cê sabe que ele já te achava antes disso uma gênia de outro mundo. Desde que te viu abrir um fliperama em Belém pra geral jogar de graça. Claro que ele acredita em qualquer merda que você disser pra ele, né, safada. Parece que não sabe.

Tu não teria acreditado. Eu achei que no fundo ele soubesse que era caô. Que ele tava só querendo levar aquilo adiante meio brincadeira.

—Cê vai e aproveita da inocência do Renato.

— Se tem uma coisa que o Renato não é, Tamis, é inocente.

Tamires quase sorri, mas de repente se lembra de algo com alarde, dá um tapa na amiga.

— Ou, vem cá, cê chegou tão tensa que nem deu pra perguntar. Responderam, afinal? Tou doida pra saber. A criatura engatou?

— Responderam.

— O verde tá vindo?

— O verde tá vindo.

As duas se abraçam.

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