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Murilo vai montar uma imagem do mundo a partir das imagens que chegam na sua tela. Ele fuma o cigarro lá fora e o apaga no copo americano com pouca água que estava na mesinha perto da cadeira, a imagem da sua ponta agora distorcida ali, refratada. Ele olha para o céu apenas porque sua cabeça está curvada e tenta ver alguma forma naquelas estrelas, algum daqueles desenhos vagos que ele mal conhece, as criaturas que eram vistas no céu, os corpos animados ali e que agora estavam dispersos por toda parte.

Quando ele passa pela sala sua mãe está fazendo as unhas, dá um mini pulinho sentada quando ele abre a porta.

— Nem vi que você tava aí. Cê tá fumando mais do que os dois por dia que você falou, hein?

— Tou não. Esse foi o primeiro hoje.

Murilo sempre sentia algo pontiagudo quando via sua mãe vulnerável, de alguma forma, tentando se arrumar um pouco mais e demonstrando uma vaidade que ela nunca expressava, mas que devia estar sempre lá, uma parte da personalidade que vivia embotada, dentro daquela casa, com um marido que nunca jamais passaria perto de conceber um comentário se ela fizesse algo no cabelo. Elizete parecia pouco confortável com roupas, tentando sempre ser discreta, mas ele já tinha visto fotos dela mais nova com roupas bem mais chamativas, uns sorrisos enormes que ele nunca viu ela produzir.

Nas poucas vezes que ele pensa em mostrar algo interessante pra ela no computador, ela geralmente faz uma cara simpática e distante para o que quer que seja e diz coisas vagas como: nossa ou puxa. Em seguida já sai do quarto com alguma desculpa.

— Deixa eu só ir lá na cozinha porque a água do café já tá fervendo.

Quando Murilo vai ao banheiro meia hora depois, ela adormeceu, o café pela metade já frio em cima da mesinha, na televisão uma senhora dublada fala da rara doença de pele do seu marido e da dolorosa operação experimental a que ele vai ser submetido. Ele imagina de que forma que aquelas palavras horríveis podem estar de alguma forma passando pros sonhos dela, aquilo ali figurado de alguma maneira grotesca, ainda pior do que a realidade (que já era bem horrível, pelos segundos que Murilo acabou pegando). Põe a TV no mudo e vai pro quarto, as imagens agora passando pra ninguém, energia modulada pra nenhum efeito, a única imagem da sala agora inacessível por qualquer via ótica.

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