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Não dava pra ver bem o rosto, tava escuro. Era uma figura feminina com cabelo grande e todo armado, batom roxo vívido, um vestido vermelho comprido e meio reluzente que vivia rodopiando com os gestos expansivos de quem usava. A voz era diferente um tanto, mas ainda assim era claramente o Renato afinando a voz. O som também tava estourado, mal gravado, mas audível.

A primeira voz que surgia parecia a do próprio professor:

— Então você conversou com eles?

— Conversei, oxe.

— Mas como conversou, Soraia? Com o Kierkegaard?

— Foi.

— E a Simone Weil? Com a porra do Aristóteles, também?

— Sim.

— E como foi?

— Foi ótimo, assim, top experiências da minha vida sem dúvida, todas essas almas que o senhor mencionou e ainda várias outras queridíssimas. Nossa.

— Mas como que você fez? O processo? Explica pra gente.

— Ah, depois de muita pesquisa, muita procura. Não foi coisa à toa assim, chega e vai, incorpora. Tchã. Foi todo um processo assim laborioso, de ler assim profundamente mesmo todo o material deles, o contexto da época, etc., no caso reler, né, mas assim mergulhar mesmo em tudo pra extrair dali o material mais profundo mesmo pra repetição, sabe? Em alguns casos, na língua original, em outras comparando traduções. Pra você chamar e eles responderem direitinho. E pra se ter certeza que não apareceu um impostor qualquer, né? Se tem fraude com tudo, claro que você tem também muito espírito fraudulento. Repetir não é só repetir.

— Me explica melhor esse negócio, Soraia.

— É um processo retórico, assim, mas no sentido pleno já citado acima do ato social como uma atitude dançada, transtropado assim pra um complexo autogerado de motivos emotivos. Whitehead já cantou que toda vibe é um sentimento. Tudo que perdura é uma transmissão de energia. Não há nenhuma diferença significativa entre o “Kierkegaard” enquanto complexo hoje virtual de fatos históricos e o Kierkegaard que existe em mim como complexo atual de motivos. Eu desafio qualquer um a me mostrar onde está essa diferença. Onde que ela tá?

E aqui Soraia pegou na carne solta que pendia sempre derramada do braço do Maurício, um dos professores ali, que tava na primeira fileira e que se viu convulsionado por aquela moça tão rebuliçada estar pegando nele.

— Então quando eu falo CORPO, não é essa besteira aí não, né, supramencionada. É essa máquina teleológica de produção e reprodução de fins duma espécie que se expande, tá? Desse meme que quer, né, se reproduzir, né, a qualquer custo? Richard Dawkins com o sorriso da Hermione. Mas como a síntese material perfeitamente TENSIONADA e RELAXADA da sua presença-bicho no mundo, coletivo de seres entre seres, gradiente assustado de dor e prazer, boca feita de bocas. Esse corpo que a gente então preenche em performance no ato de repetição do quê? Dos dinamogramas e estereogramas de quem? Hein? Me diz. HEIN?

Ela olhava bem nos olhos de cada um, dois ou três segundos por vez, uma intensidade insuportável.

— E-eu não sei

— DOS MORTOS.

— Ah, sim.

— DOS MORTOS.

— Tá bom, calma.

— Entendi, Soraia. Tá bem. Como que diz aqui? Mete -em- psicose?

— Ô.

— O quê?

— Brincadeira. Vocês tão muito tensos. Sim. Quê que tem?

— Vem cá. Você acredita nessas coisas, mesmo? Eu te juro que não entendi ainda. Não estou brincando.

Que-ri-dinho. Não é questão de acreditar. Vê o glossário que eu trouxe aqui, ó. Ajuda de-mais. ‘Acreditar’ não foi nem convidado pra essa festa.

Alguém aparecia bem perto da lente, nos fundos da sala e o vídeo terminava. O professor deu uma baforada e completou num tom peremptório.

— Viu? Não falei? Doida-doida, mesmo.

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