82.

<

Murilo sempre começa a pensar em como responder enquanto lê os emails de Fábio. Muito do que ele diz não tem muito a ver com os assuntos recorrentes deles no chat e nem parecem pedir por uma resposta muito imediata ou específica de Murilo. Ele esboça umas respostas com tom parecido no rascunho, mais pessoal e digressivo, tentando elaborar alguma coisa a respeito do seu dia, mas nunca tem nada a dizer, ou tem apenas uns mesmos resmungos a respeito do seu pai e da (relativa) pobreza da dispensa da casa deles, nada que sobrevivesse ao ímpeto inicial de começar a ser digitado, morrendo ali num dos vários meios-de-caminho entre sua cabeça e seus dedos.

Murilo ouve um barulho vindo da televisão da sala. Geralmente quando a sua mãe colocava o som alto assim é porque estava concentrada num filme. O gosto que a sua mãe tinha para filmes lhe era simpático, mas insondável. Respeitava sua disposição em dar alguma chance para quase qualquer coisa que estivesse passando. Já tinha gastado muito tempo tentando delimitar quais seus padrões recorrentes e aparentes critérios, mas não conseguia. Tentava estimar o apreço que sua mãe tinha por um filme através da frequência com a qual ela o via de novo, uma frequência que ele gostava de registrar mentalmente com alguma acurácia. Um sonho de liberdade, Beleza Americana, As Pontes de Madison, Edward Mãos-de-Tesoura, aquele dos anjos com o Nicolas Cage (Murilo mostrou pra ela o original alemão, apesar de não gostar muito do filme, ela também não gostou, achou muito comprido). Qualquer coisa com o Al Pacino novinho.
Murilo às vezes assistia pedaços dos filmes com a mãe, fazia perguntas que não lhe interessavam de fato, pra ver o que ela dizia, pra ver se conseguia retirar da resposta ou da sua expressão ao responder algum detalhe que lhe explicasse um pouco o que ela retirava daquilo.

— Quê que é isso que tá passando?

— Alien 3. Não é muito bom, não.

— Como que é a história?

— Eu antes não tava prestando muita atenção, mas eu gosto dessa mulher, ela é porreta, né? Teve uma cena ótima agora.

A sua mãe tinha as pernas dobradas juntas no sofá, com apenas parte de um cobertor quadriculado marrom e preto antigo cobrindo seu colo, um cobertor que Murilo desde moleque achava quente e peludo demais, piniquento, mas que ela adorava, e ficava por meses ali em cima do sofá, sendo de tempos em tempos guardado por Válter no fundo do armário, sem que ele dissesse nada. Elizete também tinha uma revista de palavras cruzadas em cima do peito, uma caneta bic guardada na divisória das páginas, menos da metade das respostas escritas, pelo que Murilo pode ver de relance.

Em cima da mesa tinha uma garrafa de coca-cola que já parecia morna, com menos da metade cheia.

— Essa aí é o cigano Igor, né?

— Oi.

— O nome dela. Sigourney Weaver. Parece cigano Igor.

A piada péssima era do Fábio. A mãe olhou pra ele com uma cara sofrida, como se ele tivesse acabado de falar algo inteiramente louco. Ele voltou para o quarto.

MURILATION 2 TEH NATION

Porra, conheci um jogador brasileiro de futebol aqui na Hungria. Estava numa boate bastante brega e cara perto do meu hotel vendo se antes de dormir arrumava alguma coisa interessante quando ouvi uma mesa falando muito alto em português. O cara era um meia meio gordinho e lento mas muito competente, com uma consistência notável nos seus já quatorze anos de carreira. Chama Wellinton Paraíba (procura vídeo dele aí, tem umas duas compilações feitas por torcedores húngaros). Nasceu na Bahia mas não volta lá tem anos.

O agente dele era um cara de quase sessenta, muito baixinho e zarolho, chamado Cassianos (com esse ‘s’ aí mesmo), um olhar bem inteligente e opaco, fica com uma mão permanente no bolso de um modo que dá impressão de que ele acha isso insuperavelmente estiloso.

Cassianos não tinha muitos outros jogadores importantes, parece, então ele praticamente vivia lá com o Wellinton na Hungria, onde tinha mais dois meninos promissores em times menores. Os dois construíram um pequeno núcleo de Brasil onde ele pudesse viver de maneira tolerável, um grupo de umas oito pessoas que ficava ouvindo pagode e sertanejo o dia inteiro, comendo comida brasileira que eles cozinhavam em casa, comprando farofa Yoki importada, bebendo muita cerveja e tirando um número incrível de fotos deles mesmos. Ficaram muito felizes de encontrar um brasileiro, sentei com eles na mesa e devo ter sido fotografado pelas duas meninas e pelo próprio Wellinton umas cem vezes, no mínimo (não tou exagerando). Todos eles passavam a noite olhando para a diversão que eles tinham acabado de ter, dando as câmeras uns pros outros para que pudessem ver as melhores fotos e compará-las. Fora uma mulher brasileira, todas as outras garota eram locais. Húngaras e romenas. Eu não consegui determinar se as meninas eram namoradas, prostitutas ou garotas que eles tinham acabado de conhecer. O Cassianos tratava elas com uma grosseria muito escrota que ninguém mais parecia reconhecer de forma verificável. Wellinton era, pra média de homem hétero, quase fofo. Eu tentei ser o mais simpático possível. A única brasileira era meio tímida, tava muito produzida, maquiada com um exagero que eu achei tocante, parecia assustada com o lugar e com todas as pessoas não brasileiras, olhando pra elas como se fossem todos bichos muitíssimo estranhos.

Eu percebi que, em certo sentido, eu tinha mais em comum com aquela garota do que com a Saskia (uma gata húngara que é o motivo real deu ter vindo pra cá, bem mais que o trem do Bartok que tá rolando).

>