81.

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— Ai foi horrível, foi horrível. Não, eu já tomei água. Vocês não param de me oferecer água. Eu tou tensa, mas é assim mesmo. Vocês ficam com essa cara, parece que não entendem porque que ninguém consegue contar um relato direito do negócio. Não dava nem pra gente entender. Não dava. Foi uma coisa absurda depois da outra, como que a gente ia imaginar? Não dava pra imaginar nada daquilo. Literalmente não dava. E eu ainda tava meio bêbada, igual todo mundo, aqueles copos grandes da Budweiser um dentro do outro e meu marido segurando eles e chamando de A Torre, A Torre, meio cantando. Não tava acostumada com beber em estádio, antes era proibido, né? Liberaram pra copa. Enfim. Ele bebia três pra cada um que eu bebia, e eu bebi alguns. Meu marido é alemão. De Munique. Ele obviamente não tava triste e ele mal fingia que tava escondendo a alegria, na verdade. Isso quando ainda tava no jogo, né, claro. Depois ele gelou igual todo mundo. Foi horrível, horrível. 

— ….

— Quando teve o tal do vídeo eu nem conseguia nem ouvir muito menos entender direito o que tava falando, só peguei umas palavras assim solta, mas dava pra ver a raiva, né, e que o menino era maluco. Nossa, deu uma vergonha.

— ….

— E eu só pensava, gente, gente, nunca imaginei que uma coisa dessas ia acontecer no Brasil. Aqui sempre foi aquela coisa fuleira que a gente conhece, mas nunca teve fanático, nunca teve esses — como que chama? — extremismos. A copa ia ser tão linda, não sei o quê. Meu marido sempre falava que a Copa ia mudar o Brasil, meio brincando, mas eu acho que na verdade super a sério, que ele tem essas coisas meio românticas também dele. As pessoas não sabem, mas alemão é muito romântico, na verdade. Ele gosta muito daqui, sabe? E nem tava dando tanto problema assim dos aeroportos das coisas, todo mundo tava com tanto medo antes. Mas tava tudo lindo, aquela festa, aquela brasilidade, dava até quase orgulho de ser brasileira por um segundinho. Imagina.

— ….

— Sim. E aí essa merda, né? Essa bosta do tamanho do mundo. Primeiro o jogo e depois aquela papagaiada, aquela coisa louca que ninguém explica, aquela nojeira. E olha que eu não fui das que mais sofreu, não. Eu levo minha vida ainda, imagina. Se eu, gaúcha de Ponta Grossa com mãe baiana, vou deixar que um bando de terrorista retardado me assuste. Um bando de hippie vagabundo? E uns pássaro, uns trem que eu acho que nem aconteceram, que a gente delirou, sei lá. Porque não é possível, é claro que não é possível. Sou católica e sou totalmente cética com todo e qualquer tipo de besteira sobrenatural, não tenho papo com essas coisas. Sou dentista, que no fundo é uma forma de cientista. Eu falo que botaram alguma coisa na bebida, meu marido fala que não tem como, que os toneis vêm fechados de fora. Ele é amicíssimo tanto dos caras da Heineken quanto de muita gente na entranha da AMBEV. INBV AMRO, aí. Eu sei lá. Tem gente que não supera. Tem muita gente que tava lá e que mudou totalmente depois. Assustou, sei lá. Eu não sou psicóloga.

— ….

— Sim. Não tem nem um mês, mas já dá pra ver. Já ouvi quase uns dez falando igual. Falando que tudo que a gente faz tá destruindo o mundo, que não sei o quê, que compravam um casaco da Dior e conseguiam sentir as mãozinhas de criança de Bangladesh nas linhas da costura. Sério. Umas frescuras, meu deus. A Dior nem tem fábrica em Bangladesh, aliás. Eu fui atrás. Além de mimimi, é desinformado. Que saíam do jatinho particular pensando nas calotas derretendo, que tão passando o foie gras no pão no restaurante e o grito do ganso gordo vem estourando no ouvido. Sério, é ridículo. Gente que nunca foi dessas coisas. Eu fiquei impressionada, mas como meu foie gras tranquilamente, muito obrigada, porque ninguém é de ferro. Jatinho eu não tenho, mas se tivesse eu usava, também, tranquilamente. Tá maluco.

— ….

— Quê que tem o meu marido?

— ….

— Ah. Olha. Eu não vou expor a vida da minha família, mas sim. Tá? Mas sim. Já que vocês insistem. Ele também. Ele também.

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