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Murilo lembra da impressão fantástica que tinha de tecnologia quando era moleque. Não sabe precisar a idade, provavelmente em torno de nove ou dez anos, por aí. A sua memória sempre foi pouco cronológica, pouco linear, lembrava com muita vividez de estados de espírito, ideias, impressões estéticas fortes, mas quase nunca de eventos narrativos da sua própria vida. Primeira vez que fez alguma coisa, interações específicas com amigos ou parentes, tudo de pessoal na sua memória se misturava numa barafunda pouco interessante, bem menos precisa do que uma sequência específica de versos do Camões ou do Browning ou os gradientes e o brilho de um plano de cinema que ele amava.

O que ele lembra é de ser muito novo e ficar olhando para a sua televisão com uma cara suspeita e tensa, tentando entender como que aquelas imagens chegavam ali. Olhava para fora e via as antenas em cima das casas, tentava com muito esforço imaginar as imagens chegando de longe, do espaço, em raiozinhos ou vaporizadas de alguma maneira, irisadas numa manifestação de luz que ele não conseguia enxergar (e que ele associava com fenômenos ópticos igualmente impressionantes, mas visíveis, como o arco-íris).

Ele perguntava para os seus pais, que davam respostas sempre curtas e insatisfatórias. Rapidamente percebeu que eles tampouco deviam saber o que tava acontecendo.

Murilo encarava os CDs que diziam 1000 HORAS DE INTERNET GRÁTIS UOL e ficava um tempo enorme pensando de que forma poderia funcionar aquele disco. Parecia apenas ter um espelho ali do lado onde a mãe dele disse que a internet ficava gravada. Ele começou a suspeitar dos espelhos na sua casa, que eles talvez também guardassem informações (possíveis milhares ou milhões de horas de internet escondidas há décadas no espelhão do quarto dos pais, sem que ninguém usasse).

Tentava imaginar como que alguma coisa se guardava naquele objeto circular e tão simples. Depois que encontrou uma descrição numa revista de sala de espera de dentista passou a tentar imaginar pequeníssimas inscrições, desenhos muito complicados e minúsculos feitos com laser, milhares de peças minúsculas e precisas interagindo, seguindo instruções sequenciais como aquelas que tinham vindo no manual do barco pirata de Lego que o avô lhe deu num sonho.

Passava um bom tempo tentando imaginar como seriam os desenhos complexos e enormes que deviam estar contidos ali para o seu computador compreender o que fazer. Danadinho.

Haviam muitas máquinas misteriosas, mas de todas o computador era de longe a que mais lhe causava assombro. A princípio foi instruído pelo pai a seguir uma rota determinada de caminhos permitidos online (havia uma lista de sites para crianças que o pai tinha encontrado numa revista semanal, recortado e colado no monitor, logo abaixo da tela). Ele digitava o endereço e algum tempinho depois apareciam imagens, mais caminhos, pequenos textos e galerias de fotos. Ele não conseguia entender como que tantas imagens estavam guardadas lá dentro, nem como que o computador entendia o que ele queria fazer. Havia o mouse, claro, tão intuitivo, mas como que ele guardava tanta coisa e recuperava com tão pouco atraso? O computador ficava no seu quarto, porque tinha ficado esquisito na sala e a mãe não queria que ficasse no quarto deles. Murilo não se incomodava com a ideia, mas aquela presença massiva e ventilada no seu quarto lhe dava um senso de gravidade e circunstância que acabava sendo bastante cansativo, impondo tarefas demandantes à vida diária da sua imaginação.

Murilo tinha desde muito novo o costume de falar sozinho, mas parou de fazer isso quando instalaram o computador no seu quarto. Se perguntado, ele diria com toda honestidade que o computador não tem meio de ouvir aquilo, nem de registrar o que ele dizia. Mas, ainda assim, ali diante dele parecia impróprio ficar falando, de algum jeito.

Teria que ter gente em algum lugar remoto para entender tudo aquilo que seu computador fazia, ele não conseguia acreditar que tudo poderia se dar automaticamente (ele entendia mecanismos aparentes, peças que se encaixavam, como uma manivela, ou mesmo o motor de um carro, que fica explodindo o tempo todo pra andar). Sentia que tinha uma noção razoável de como as coisas funcionavam (prestava atenção nas aulas de ciência e no que diziam os adultos) e aquilo ali não parecia fazer sentido. Passou a imaginar que de alguma forma o que ele fazia no seu computador era lido por uma série de pessoas escondidas em algum lugar (talvez americanos, talvez japoneses) e que elas todas lhe forneciam imediatamente, com muita gentileza, tudo que ele pedia através da interface. Um batalhão de telefonistas atenciosos operando um gigantesco e pressuroso quadro de distribuição. Murilo gostaria de poder lhes comunicar a sua imensa, imensa gratidão.

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