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Murilo nunca perdia o fascínio diante da internet e de tudo que ela lhe permitia, ele e Fábio conversavam sobre isso com muita frequência. Além de literatura, era o assunto mais recorrente entre os dois. Não tinha ideia do que seria a sua vida sem o seu computador e uma conexão razoável. O plano da família já era bastante ultrapassado, ele demorava geralmente uma noite pra baixar um filme em qualidade boa, mas achava quase indecente achar aquilo pouco, ao invés de se impressionar de novo e o tempo todo com a imensidão daquilo. Que ele pudesse de graça acessar todos os mundos que ele acessava daquela sala abafada e pouco atraente no meio do cerrado goiano. A internet lhe invocava sentimentos quase místicos. Quase não.

Mesmo hoje ele passa o dia garimpando, hoje que ele já se considera velho e cansado, aos vinte e poucos, longe do ânimo ensandecido e integralmente comprometido que ele tinha de pesquisa e leitura dos quinze aos dezenove, mais ou menos. Ele leu tudo que alcançou como quem se defendia de alguma coisa. Ainda lia muito, mas muito menos. Assinava mais de nove listas de discussão e era membro de sete fóruns (embora só fosse de fato ativo em dois deles).

Também via vídeos de jovens russos bêbados se esmurrando, de moleques no interior de São Paulo numa laje fazendo um rap paródico sobre o Corinthians, de uma performance simpática e enternecedora de uns estudantes nas ruas de Santiago. Ele ia até a terceira página de comentários sobre um vídeo de um comediante tolo que recentemente havia se tornado polêmico por ter sido considerado racista. Ele deglutia tudo isso com atenção e até chamaria o sentimento diante da torrente de um sentimento de dever, embora não soubesse dever de quê, diante de que espectro.

É verdade que a internet tinha piorado muito nos últimos anos, o seu lado mais selvagem de conexões desenfreadas, aleatórias e anônimas cada vez mais domesticado nessas poucas redes sociais onde todo mundo precisa autenticar uma presença oficial e tudo parece prefigurado. Uns poucos protocolos controlados de um punhado de corporações servindo de playground para que a gente produza conteúdo de graça e construa cada um sua marca pessoal no processo. Falam muito do fim da privacidade, de que o modelo de negócio deles é baseado nas nossas informações, mas Murilo ficava impressionado às vezes vendo como as postagens se pareciam umas com as outras, mesmo diante da evidente vontade de todo mundo ali querer se distinguir e se destacar desesperadamente, tanta coisa se repetia com mínima modulação que Murilo começava a pensar numa malha rígida de ação, todo mundo agindo apenas a partir de uns mesmos poucos diagramas e confundindo os gestos daqueles títeres com eles próprios.

E pra ele, que quase não saía de casa, o constrangimento progressivo da rede onde ele, de fato, morava, parecia ainda mais desesperador, ainda mais limitante. Mas se a internet não mais parecia a selva miraculosa da sua adolescência, o acesso bruto à informação continuava maravilhoso, mesmo com os avanços tenebrosos e preocupantes contra a pirataria.

Nessa torrente quase infinita ele valorizava em especial aqueles que conseguiam fazer um bom trabalho de curadoria cuidadosa. Como em tudo na internet, havia nessa atividade uma tentativa bastante evidente de moldar uma figura, uma personalidade. Compilar era mais uma forma de montar uma voz, de tentar se compor diante de todos os outros, montar uma figura própria sua. Ele há muito que não fazia nem isso. Ele não saberia dizer porque, mas nunca nem chegou perto de ter blogs e extensões onde ele se depositasse mais diretamente.

Sempre teve um incômodo extraordinário, pontiagudo e preciso, que ele sentia de se representar de qualquer maneira. Não gostava nem de ter o nome dele listado no Google como aprovado no vestibular. Além das amizades que mantinha por chat, a sua participação no fórum foi uma exceção à essa invisibilidade online.

Na maior parte do tempo, Murilo gostava era de ver e de não ser visto.

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