77.

<<

Nos primeiros dias a interação foi um pouco forçada. Renato conversava com todo mundo, o Pedro, a Bárbara e a Amanda tavam sempre juntos, mas Tamires e Rafaela ficavam um pouco mais isoladas. Amanda era a mais simpática, Tamires achou, tinha uns olhos enormes muito atentos e ficou super interessada quando Tamires falou que era tatuadora (“você é a primeira tatuadora não tatuada que eu conheço na vida”). Além de ser ridícula de tão linda, cabelo encaracolado e umas pernas que doíam o coração só de olhar.

O primeiro sequestro foi o mais tranquilo. O cara era muito rico, mas não tinha segurança nem nada, tava exatamente onde Renato falou que estaria (saindo de um bar no térreo de um prédio de apart-hotel do Itaim Bibi lá pelas uma e tanto). Era o atual presidente de uma empresa familiar de agropecuária com fazendas do tamanho de pequenos países europeus nos dois Mato Grossos e no Goiás. Não só tinham práticas péssimas com os bichos e com agrotóxicos, amplamente documentadas, como tinham sido denunciados algumas vezes por intimidação e até assassinato de lideranças indígenas.

Teve uma puta produção pra educação dele, na qual Pedro, Tamires e Bárbara trabalharam muito tempo enchendo uma piscina de um negócio que parecia, mas não era, a gosma rosa que se faz com carne processada de frango (mecanicamente recuperada, o Pedro citava com uma voz de comercial). Pedro tinha trabalhado no ateliê de vários artistas bem-sucedidos que usavam materiais pouco ortodoxos e se revelou muito mais criativo e cheio das habilidades e conhecimentos técnicos arcanos do que Tamires imaginava (ela foi perceber só então que ele afetava nas roupas e na aparência geral uma tentativa muito deliberada e cuidadosa de se vestir da maneira mais genérica e sem graça-possível, a tentativa era tão bem-sucedida que a primeira impressão era de que era alguém que não se importava nem um pouco com a sua aparência, mas um contato mais prolongado mostrava que a verdade era o exato oposto).

Tamires acabou se aproximando deles assim. Tanto Pedro quanto Bárbara eram muito exagerados e dramáticos, sempre explodindo em alguma imitação de alguém ou só alguma zoeira corporal destrambelhada e gratuita. O sítio era da família dela, rica sabe-se lá de onde. Ela e Pedro dividiram as tarefas entre todo mundo e a coisa nesse sentido até que funcionava direitinho, com pouco conflito. Os mais privilegiados ali um tanto mais ineptos do que os outros com algumas tarefas, mas ainda mais dispostos (à exceção de Bárbara) a mostrar serviço.

Tamires achava muita graça da evidente vontade dos três, ali, de algum jeito fingir que não eram absurdamente ricos. Não era o tempo todo, tinha hora em que o velho impulso já introjetado de distinção fazia algum deles ou falar com naturalidade de alguma experiência que obviamente só gente riquíssima conheceria ou reclamar de algo de que só gente riquíssima reclamaria. Havia essa linha mais ou menos evidente separando ela, Tamires e Renato de Pedro, Bárbara e Amanda. Mas o único que se atrevia a tratar desse linha diretamente, com todas as letras, era Renato, com piadas carinhosas que pareciam deixar os três ao mesmo tempo ansiosos e aliviados.

Só depois do segundo sequestro, depois deles deixarem a desembargadora a um quilômetro de distância de um posto de gasolina e voltarem triunfantes para o sítio, foi que a coisa começou a ficar mais alucinada ali dentro.

Compraram muita bebida, Pedro e Bárbara tinha trazido MD. Começou meio como comemoração pela empreitada de todo mundo ali, Renato dando um discurso alucinado, quase cantado, e foi virando uma discussão acalorada, mas pacífica, entre Pedro, Tamires, Amanda e Rafaela. Tamires achava muito massa o que eles tavam fazendo, mas não entendia ainda que efeito positivo que aquela merda podia ter. Pedro defendia que aquilo era muito importante tanto pra botar medo naquelas pessoas quanto pra educá-las de verdade. A Rafaela riu e falou que óbvio que ninguém ia se educar de verdade. Só iam sair dali com mais raiva de tudo aquilo que eles já odiavam. A Amanda dizia que eles iam ter que divulgar alguma coisa dos vídeos que tinham feito, ainda que ela não soubesse ainda como, nem quando. Tamires falou que divulgar os vídeos ajudaria que eles fossem pegos. Pedro falou que era só editar, divulgar partes que não comprometiam ninguém e nem o lugar. Bárbara se denominou a fada do MD e falava que ia escovar os dentes de todo mundo, dedando o saquinho de pó branco e oferecendo quase como uma ameaça pra todos.

Nesse meio tempo o Renato tinha sumido, ninguém percebeu. De repente ele aparece vestindo só um sombreiro rosa, mais nada, e cantando, ridiculamente, um refrão do Beto Guedes, pra em seguida anunciar com voz profética:

— O que a gente tem que fazer é mexer no desejo da galera. É mexer com o desejo da galera. Não tem revolução sem tesão. Isso aqui não é nem o começo ainda. É o começo do começo do que pode talvez vir a ser um começo de alguma coisa.

Aí ele vai e beija o Pedro e, logo depois, a Bárbara. Os três começam a se pegar, a Amanda bota a mão dentro da calcinha e Tamires e Rafaela ficam só olhando, sem saber muito o que fazer.

>>