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Rodolfo Serafim Cipriano & Bragança da Maia achava difícil, às vezes, em festas e vernissages, explicar o que ele fazia. Normalmente ele só dizia que trabalhava com informação. Oclinhos pequenos e coloridos, cara de Papai Noel safado. Sempre gostou de circular em outros cantos que não os de seu trabalho. Duas ex-mulheres acadêmicas. Uma artista. Geralmente quando insistiam ele dizia que trabalhava com mercado financeiro, mas aquilo sozinho soava sem graça. Ele próprio nunca gostou de se imaginar um mero investidor qualquer. Ou mesmo “dono de hedge fund“, como alguns brasileiros falavam. Rodolfo pintava, praticava polo. Lia Husserl (e não entendia muito, mas ainda assim). Era um homem renascentista. Não era um bárbaro como esses moleques de Wall Street. Havia elegância no que ele fazia, mas era difícil de traduzir isso pros outros.

Rodolfo evitava explanar seu trabalho sempre que possível. Não é o tipo de trabalho para o qual você estuda na universidade, exatamente. Os lugares em que ele estudou nos Estados Unidos e na Europa, todos caríssimos, os mesmos do pai e do avô, ajudaram muito mais para conhecer gente e ir se azeitando dentro de algumas engrenagens. Escola privada na Suíça, depois Business em Yale. Não é só saber arranjar os canais certos e saber cultivá-los com o cuidado adequado, sem apertar forte demais nem deixar nada solto além da conta. Importa mais ter os ouvidos bem abertos e a capacidade de fazer conexões estranhas e imprevistas. A questão não é mais só da informação bruta que você tem, é muito mais da triagem, de saber filtrar o que importa e o que não importa, distinguir o sinal do ruído.

Um fundo de investimento que está comprando futuros de commodities na América e na África pode não saber que precisa saber de novos dados metereológicos que militares chineses estão vendendo. Uma mineradora noruguesa pode não saber que precisa das projeções de recursos geológicos que estão saindo de análises geofísicas experimentais numa universidade no Chile. Um conglomerado de comunicações mexicano pode não saber que está comprando uma plataforma fajuta de streaming de música, com dezenas de milhares de usuários falsos, e que o funcionário infeliz que fez tudo que presta na plataforma está disponível por um décimo do preço.

Nem todo mundo recebe bem as suas aproximações, alguns entendem como chantagem. Porque ele não pode, quase nunca, já chegar entregando o jogo todo, senão seu produto não valeria nada. Ele só faz isso com quem já tem uma relação estável e de relativa confiança. Por isso gosta de ser apresentado, para que ninguém confunda as coisas. Geralmente ele precisa se apresentar para quem não sabe quem ele é e explicar de um jeito convincente que ele sabe de algo que eles precisam saber. E que esse conhecimento precisa ser devidamente recompensado, claro. Havia um ou outro que tentava sair na conversa, botando a mão no ombro com cara compungida de viúva e falando que não sabia como poderia agradecê-lo. Rodolfo repetia o que o seu próprio advogado dizia. Desde que os fenícios inventaram a moeda ficou muito fácil resolver esse problema.

Rodolfo sabia muito bem que o mercado era tudo, que ele se alimentava de tudo. Tanto dos dados mais brutos do que acontece no mundo, tudo que é produzido e comido de verdade, tudo que circula. Quanto das mínimas inflexões simbólicas que as marcas e os países e mesmo os materiais ganhavam na tessitura geral de valor. Nada era insignificante. Há muito que seu pau quase nunca subia e que toda sua libido se voltava exclusivamente naquela direção. Rodolfo chegava a sentir o períneo se contrair quando sentia algum encaixe se apresentar entre duas pepitas de informação até então soltas.

O ramo tinha mudado muito em pouco tempo. Ele se orgulhava de ter acompanhado quase todos os desenvolvimentos das décadas anteriores, mas agora o jogo se dava cada vez mais com trading de alta frequência, entre algoritmos e seus muitos gatilhos mutuamente engatilhados. As informações se espalhavam rápido demais e se compilavam com quase a mesma rapidez alucinante, inumana.

Na década de noventa, depois da Guerra Fria acabar e o exército redirecionar muito da grana que ia pra físicos e matemáticos, estes foram migrando todos para o mercado financeiro, inventando os instrumentos mais rocambolescos, os derivativos mais abstrusos e convolutos, os modelos de predição mais robustos possíveis engolindo e cancelando uns aos outros no ruído geral.

Rodolfo conseguia acompanhar quase toda a matemática que iam inventando, mas se irritava com o fato de que boa parte do jogo agora se dava entre máquinas se engalfinhando sozinhas. Pelo menos daqueles jogos que ele conseguia jogar (ele, afinal, um operador pequeno de peças enormes, que tentava desde os trinta e tantos ter alguma independência e não ficar atado a algum grande mega-organismo corporativo, qualquer que fosse). Não tinha mais tanto espaço assim, Rodolfo sentia, para ser esperto e se dar bem sozinho. Não do jeito que ele tinha feito durante anos, do jeito que lhe havia rendido uma carreira sólida que o sustenta bem até hoje, através de tantos divórcios. Graças a deus sem filhos. As discussões agora eram de obras milionárias de cabo de fibra ótica perto das bolsas de valores para ganhar milésimos de segundo no tráfego de dados. Como que alguém pode querer antecipar vantagem sozinho nessa palhaçada ciborgue? Ele contratou sangue novo para acompanhar a matemática, mas se sentia velho ouvindo eles falarem e não mais estimulado.

Rodolfo expressava essa ansiedade com alguns poucos amigos com quem ele não competia diretamente (nunca é aconselhável mostrar fraqueza pra quem pode se beneficiar dela). Ainda se sentia bem situado, só o dinheiro de consultoria que ele tirava sem trabalhar tanto já satisfazia seus gostos, aristocráticos, claro, mas quase estoicos, pra média da sua classe. Suas extravagâncias maiores eram pegar o jatinho para ver partidas específicas de futebol de última hora, Sakura todo ano no Japão, primavera na Toscana com a família. Rodolfo já conseguia ver o dia em que um adolescente indiano que não conhece ninguém que ele conhece conseguiria fazer o trabalho dele com muito mais eficiência. Sentia que o tapete tava sendo lentamente puxado por debaixo de seus pés e queria pular logo pra algum outro canto.

Isto permaneceu como ansiedade vaga até que um projeto misterioso chegou no ouvido dele. Algo completamente além da sua alçada habitual, o maior peixe que seu anzol jamais havia fisgado. Uma das muitas vantagens não só de ter estudado em Yale, mas de ter feito parte do Skull & Bones e de fingir levar aquela merda a sério mesmo tendo que gastar os dentes uns contra os outros de agonia ao lidar com aquela gente horrorosa. Rodolfo era esperto o bastante pra saber o que via no espelho. Sabia que os tempos eram outros e que a sua imagem era de um almofadinha riquíssimo e privilegiado, europeu, de uma família tradicionalíssima portuguesa com muito carma nas costas. No geral, Rodolfo tinha orgulho de sua família. Mas tinha coisas que lhe tremiam a espinha. Lembrava de tios caquéticos falando pra ele, criança, que bom mesmo era com escravos. E que na África ainda dava pra fazer de conta. Isso nos anos sessenta. E ainda assim Rodolfo ficou chocado com o que viu nas noitadas de seus colegas de sociedade secreta.

Rodolfo tinha a casca grossa, já tinha ajudado a lavar o dinheiro da cúpula imediata de muito ditador sanguinário, já tinha abraçado calorosamente, bêbado, muito traficante de arma. Isso antes dos quarenta.

Mas teve dificuldade de esconder o nojo quando viu aquele bando de moleques mimados rosados ostentando o crânio de Jerônimo e cuspindo. A coisa toda era nauseante, mas lhe rendeu assim que saiu da faculdade os primeiros empregos no mercado financeiro, ainda nos anos 80, aquele delírio sustentado de coca e um sentimento de aceleração eterna até o fim. Uma ereção dolorida que foi se exaurindo numa década de noventa mais limpinha e PC. Rodolfo entrou pra yoga e aprendeu meditação. Teve, de todos, o seu casamento menos autodestrutivo, o mais próximo de algo mais ou menos carinhoso (Yolanda, professora chilena de teoria literária com foco em literaturas de testemunho das ditaduras militares latino-americanas. Havia quem a considerasse, na época, a lata de Salma Hayek).

Mas não foi só o pertencimento à antiga sociedade que lhe rendeu essa nova, estranhíssima, empreitada. A segunda vantagem de Rodolfo, a mais importante (ele pensava, contando vantagem de si mesmo em terceira pessoa no banho), era a de ser alguém genuinamente interessado em tudo, alguém que se mantinha atualizado das artes e das teorias de vanguarda, mas não só. Alguém que mantinha contato com seus amigos cientistas e com seus amigos que foram pras entranhas da inteligência militar americana. Mesmo sem nunca ter, em trinta anos, lucrado nada com isso. Contato próximo, espontâneo e simpático, que para anglo-saxões carentes facilmente passava por honesto e caloroso. O interesse de Rodolfo em tudo que existia (da mais alta arte ao maior lixo de entretenimento, do aquecimento global ao mercado “verde” em expansão) só era em parte mediado pela consciência profissional e prática de que o mercado engolia e envolvia tudo. Ele entendia como sendo esse seu maior diferencial de vários investidores independentes que sabiam mais matemática do que ele e não conseguiam se dar tão bem. Rodolfo estava sempre tentando apanhar um dado como algo que pudesse ser útil, pensando com que outro dado ele podia copular e parir grana, mas havia nele ainda uma curiosidade infantil e desinteressada que só raramente se acendia assim, desta exata forma, ao ver peças distantes de potencialidade se encaixando num clique sensual.

O tal projeto que chegou aos seus ouvidos diligentes, enfim, era um projeto não-exatamente-oficial do governo americano e de algumas agências europeias de pesquisa, que estaria precisando de financiamento externo discreto. Com possibilidade, tudo dando certo, de extraordinário retorno financeiro. Sigiloso, naturalmente.

Pelo que Rodolfo conseguiu reconstruir depois, a coisa tinha nascido na DARPA, saído pra fora dos EUA para instalações clandestinas na América Latina (usando slush funds de droga da CIA, um passarinho lhe contou) até que o dinheiro acabou inteiramente. O projeto ficou abandonado até um grupo ambicioso de cientistas propor um uso inesperado da tecnologia que eles tavam desenvolvendo e a possibilidade de financiamento externo virar real. Foi aí, com eles sondando indivíduos bem-conectados mais do que instituições, tentando manter o rastro de papel no mínimo do mínimo, que a história chegou no seu ouvido.

Não era muito claro em que pé institucional que a coisa se dava, mas Rodolfo nunca queria saber mais do que precisava, também. O que se deu foi que Rodolfo aconteceu de ser amigo tanto de um conselheiro do governo quanto de um membro de uma agência situada na Suíça e eles acabaram chegando juntos no seu nome para reunir o seleto grupo de investidores necessários para financiar o projeto.

Foi assim que venderam o peixe para o próprio Rodolfo num restaurante japonês em Genebra, em 2006. Os três ocupavam uma mesa privada enorme para mais de doze pessoas e sendo servida por muito mais gente do que precisava, o copo d’água com gás reposto a cada pequeno gole. Escreveram num guardanapo, olhando com uma cara tensa pra ver a sua reação, pareciam crianças:

Seria um tipo inteiramente novo de computador quântico que conseguiria calcular todo o complexo de relações do mercado e computar a sua reação em cadeia antes que ela ocorresse.

Não é que ele realmente preveja o futuro, claro, o americano anunciou em voz alta, com um senso natural de hipérbole de vendedor. Mas daria uma vantagem de uns bons milésimos de segundo, ou mesmo segundos inteiros, para tomar as decisões corretas em momentos cruciais. Quem sabe, dependendo das oportunidades, não só antecipar, mas até velejar de forma vantajosa essas quedas relâmpago que andam acontecendo.

Rodolfo sabe que se hoje milésimos querem dizer milhões de dólares, segundos querem dizer bilhões.

Rodolfo arrumou seis grupos e indivíduos para compor o trust. Só ele sabia quem todos eram, já que alguns dos nomes fizeram questão de anonimidade absoluta. A responsabilidade dele era garantir que as movimentações de nenhum dos doze ferisse um ao outro, o que era mais difícil de garantir do que ele tinha antecipado a princípio.

Só ele lidava com as irmãs, só ele tinha conhecido de fato o laboratório na Bolívia. Tinha coisas que ele achava melhor não contar pra ninguém por precaução. Nunca se sabe quem é confiável e quem é linguarudo. Sempre que você acha que sabe é porque tá se iludindo, Rodolfo sempre dizia. Mas a maior parte das coisas desse projeto ele não contava pra ninguém por outro motivo. Não saberia como começar a explicar e não gostava de soar doido.

Que o computador era uma forma de vida que ao que tudo consta tinha DNA alienígena ele não contou para ninguém que não precisava saber e nem planejava contar a não ser que precisasse. Rodolfo sempre ria quando lembrava e depois se benzia rapidinho, por superstição.

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