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Todo mundo se vê sempre enredado numa série de tramas, mas Murilo se considerava isento de quase tudo, de toda essa comoção coletiva da qual todo mundo se via participando. Observava e processava uma quantidade absurda de coisa, mas ele não se metia direito em nenhuma delas, não se considerava inserido de fato em nada. Nem no Brasil, exatamente, ele se considerava tão metido, embora soubesse que talvez fosse uma cegueira da parte dele.

Murilo há anos não mais sonhava consigo mesmo, exatamente. Seus sonhos geralmente eram destituídos de protagonistas, documentários confusos traçando panoramas vastos com personagens oscilantes ou no máximo com um protagonista que obviamente não era ele. Um senhor polonês baixinho segura a vontade de fazer xixi enquanto tenta arquivar papéis numa universidade soviética na década de setenta, uma artista mexicana obesa monta uma exposição feminista no MoMA onde o andar da sua exposição fica restrito ao público como forma de representar a exclusão sistemática da mulher de vários campos ao longo da história. Murilo acorda de sonhos como esses e precisa de um pouquinho de tempo para recuperar exatamente quem ele era. Mesmo não passando de poucos segundos, era um pouco assustador. Porque no final das contas quem ele era acabava por ser mais uma soma de suas contingências materiais do que qualquer outra coisa. Ele era o seu apartamento, a sua pequena pança, a sua caspa nos ombros, a sua garganta arranhada. A voz dentro da sua cabeça não conseguia fixar uma presença muito mais momentosa do que isto, do que ela mesma, encerrada naqueles limites estreitos.

Mas claro que essa vida isolada, ascética em partes, voraz em outras, essa presença austera e retirada do mundo, era também sua trama singular. Um enredo chatérrimo não deixa de ser um enredo.

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