73.

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A sua nuca tava doendo ainda, dava pra sentir quando mexia a cabeça. Tinham tirado todo o cabelo dele, pelo, sobrancelha, tudo. Estava de olhos vendados, amarrado, as duas meninas rindo. Uma delas ia com cuidado, a outra arregaçava. Deixaram nem o bigode.
E botaram alguma coisa na bebida dele. Ou na comida. Só podia. Tava tendo umas ideias estranhas, umas sensações que não eram normais. Tudo tava meio derretido, mais lento e mais acelerado, ao mesmo tempo. Talvez ele tivesse ficando doido. Não, deviam ter botado droga mesmo. Só podia ser. E que porra será que deram pra ele?
Era o segundo dia. Ele tava agora numa banheira velha marrom acomodada em cima de rodas, ele não entendia tão bem como. Acorrentado a um cano que saía debaixo dela, com uma cortina vermelha aveludada em volta da banheira toda. Ele julgava que devia ter quatro ou cinco pessoas em volta dele empurrando ou puxando a banheira, mas não dava pra ter certeza. Eles mudavam de lugar e faziam barulhos os mais esquisitos.


— Vamo? É hoje tua primeira aula assim aula memo.

— Mas nem pensa como aula, não.

Falaram isso depois dele acordar nessa banheira e já foram empurrando o negócio adiante. Já parecia ser final de tarde, ele tinha dormido esse tanto? A primeira voz mais ríspida e feminina, ainda que grossa, e a segunda a do cara que parecia pagar meio de líder, até onde ele via, que era simpática mas esquisita, líquida e dada demais.

— Cê sabe certamente deve muito bem saber, meu querido, que toda a grande nobilíssima instituição da qual cê participa, o corpo de ações do qual tu é um membro, o Senado, vem dos grego e dos romano, aqueles doido.

Ele não falava nada, até pensava em pedir que parassem, mas sabia que não ia adiantar. Tava um pouco tonto, mas tava mais puto que qualquer outra coisa.

— Pois temos hoje uma surpresinha realmente que não é pouca merda não. Se você assim for um cara que tem aquele interesse naquela coisa toda de história. Assim a história, né, a com agá maiúsculo. Seus problema acabaro, Jarba. Você vai ver hoje a mais perfeita, mais completa, mais dedicada, mais cuidadosa, mais maravilhada e maravilhosa reconstituição já executada dos mais cabulosos, sinistros, ctônicos, desmembrados e deslembrados mistérios que a nossa querida Antiguidade já sonhou em produzir. Àqueles que viam isso das antigas era concedida a vida eterna, eles diziam, e tem que se entender isso do jeito mais literal que der. Só relaxa sua camerabilidade, deixa o troço encaixar e vai, Jarbinha, que pelas pujança de suas zureba eu sei que cê vai sentir o drama. Aguarde e confie. Deixa acontecer na-tu-ral-mente.
Quando saiu da banheira, tava no início de um bosque, as árvores adensando logo adiante dele. Conseguia ver uns pontos de luz se mexendo no fundo, e ouvir uns gritos tanto femininos quanto masculinos.

— Per-séee-fo-ne.

Continou andando, galhos e folhas se esfregando no seu corpo quase nu, coçando e pinicando. Será que ele tinha que encontrar alguém? Se ele encontrasse será que levariam ele de volta pra dormir ou dariam alguma comida, pelo menos? O bolo de fubá fresquinho que ele comeu tava ótimo. Considera tentar sair correndo, mas só de cueca no meio do mato e algemado ele não ia aguentar muito tempo. Olha pro preto do bosque entremetido de troncos e pensa que podia ter dado a sorte de lhe arranjarem uns sequestradores menos malucos naquela merda de país, pelo menos.

— Cho-ve, cho-ve.

Vê uma das meninas passar correndo bem na frente dele, quase peladas, algumas, e completamente pelada, uma delas, a mais gorda, segurando algo como um cajado todo enfeitado e uma lanterna que ela fica chacoalhando, iluminando sempre retalhos diferentes das árvores. Apontam para o céu enquanto gritam. Agora que ele vê que alguns galhos estão enfeitados com tiras coloridas e uns adereços que parecem pinhas e figos. Todos usam máscaras de algum tipo, a maioria uns rostos grotescos de papel machê.

— Onde vocês estão? Já deu de brincadeira, hein. Vamo dormir, gente.

— Per-séee-fone, cadê você? U-huu.

Esse grito parecia ser de um homem afinando a voz. Em seguida passam de novo as meninas agora apontando pro chão e pras árvores.

— Conce-be, conce-be.

Ele vê movimentação atrás de umas árvores, logo ali à frente e logo acima duma pequena alevantada de terra. Vai subindo com dificuldade, reclamando e xingando, puxando cipós e galhos que consegue alcançar. Quando chega mais perto, vê que tem quatro ou cinco deles de costas, sentados, assistindo alguma coisa atentamente. A menina mais gorda, negra, está no centro, um pouco de pano dourado drapejando em torno dela e cobrindo quase nada do seu corpo considerável e cheio de dobras, que se contorce e se projeta, seus músculos alternando entre liquidez e rigidez, seus olhos fechados de uma intensidade insuportável. Ele fica um pouco assustado, sem saber se eles querem que ele assista ou não. Continua ali atrás de todos sem fazer muito barulho, e pensa que tá muito cansado. Só depois da menina gozar, gritando como um bicho morrendo pra depois arrefecer, é que alguns se viram pra trás e reconhecem a presença dele. É o maluco sem uma perna que pega das mãos da garota o que parece ser um consolo enorme e azul que parece uma cobra, tira de dentro dele uma espiga de milho toda esbagaçada, vem todo solene entregar ao senador, depois de cheirá-la de maneira exagerada e profunda, falando.

— A história é um pesadelo do qual a gente tá tentando acordar, Jarba.

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