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Sete e meia, Dennis me acorda e tomamos café da manhã na sala em que eu havia dormido, com ele e sua mãe de oitenta anos, Saoirse (fui entender só muito depois), tudo preparado por uma criada indígena de cabelos brancos que iam além da cintura, vestindo um vestido vitoriano de manga comprida que parecia ter dois séculos. Chamava Lady. As duas tinham uma relação estranhíssima, carinhosa e agressiva de ambos os lados. Saoirse chamava Lady aos gritos, Lady respondia aos gritos. Ela conversava em inglês com o filho, não reconheceu minha presença em nenhum momento. Já estava mais pra lá do que pra cá, com um pé no além. Morreria alguns meses depois.

Com o que restava do dinheiro da mãe, Dennis tinha acabado de abrir uma lanhouse perto do centro. Era seu segundo empreendimento depois da banca, ele me contou. Ele não era o melhor empresário do mundo, mas estava tentando transformar o patrimônio dilapidado da mãe em algo sustentável. A lanhouse ficava a meia hora de carro da casa dele. Era junho de 2001. No dia seguinte me levou lá, dizendo que arranjaria um emprego pra mim. Cheio de adolescente gritando e jogando junto um mesmo jogo onde terroristas e agentes uniformizados parecidos com o BOPE tentavam matar uns aos outros. Além dos moleques jogando, tinha sempre uns tiozinhos confusos resolvendo coisas práticas, imprimindo boleto, nada consta e resolvendo perrengue de várias ordens.

Tinha um moleque cabeludo mais velho e de expressão vazia que ficava de responsável pelo caixa e falando alto quando algum moleque ameaçava fazer merda. Luciano. Mas quem mexia nos computadores e instalava tudo, quem tinha montado a LAN e aparecia quando algo quebrava, era a menina indígena. Renato não entendeu seu nome no dia anterior, continua sem sabê-lo nos dias e semanas seguintes. Ninguém a chamava pelo nome. Devia ter dezesseis anos, no máximo, mas parecia fazer tudo com o pé nas costas. O menino ficava junto dela no quartinho em cima da lanhouse, os dois alternando em usar o computador. Chamava-se Emerson, mas ela não usava esse nome.

Quando vi a cama bagunçada num canto entendi que os dois moravam ali mesmo. Ela tinha o cabelo mais bagunçado, apesar de lisinho e preto como carvão, mais comprido atrás, mechas enormes correndo ao lado das orelhas. O dele era cortado mais curto e penteado certinho. Fora isso eram a mesma pessoa. A pouca luz da véspera não tinha me deixado ver. Os dois eram lindos.

A menina falou que além de ajudar o cabeludo lá embaixo a atender os moleques eu teria que que ajudar na faxina, mais tarde, e a descarregar umas caixas que chegariam a qualquer momento. O menino, que mal saía do computador, sorriu com muita simpatia, pegou um saco plástico que tava ali, desamarrou rapidinho, pegou uma bolinha amarelo-verde de dentro e me ofereceu.

— Pupunha?

Eu olhei pras bolinha, intrigado.

— Pupunha não é palmito?

— O palmito da pupunha é palmito. Isso aqui é fruta.

Eu comi uma.

— Parece pamonha.

Pamonha? Parece porra. Parece pupunha.

A menina que falou isso, ultrajada. Sem nem olhar pra mim, mexendo nas entranha lá de um computador. Ela não parava quieta um segundo, quando encontrava um problema olhava em volta e logo arranjava algo no seu entorno para lhe ajudar, que fosse uma chave de fenda ou um pedaço de arame.

Já o garoto não parecia que trabalhava muito ali. Ficava a maior parte do tempo lendo uns textos xerocados que pareciam muito complicados, vários sobre as mitologias de todo canto que cê imaginar e alguns sobre anarquismo (que na época eu nem sabia o que era, mas reconhecia como um palavrão). Eu fiquei bizoiando um pouco por cima do ombro dele, tentando ser discreto. Ele não parecia incomodado. Tinha duas frases impressas em letra grande e coladas na parede acima da tela.

“O colonizado descobre o real e transforma-o no movimento da sua práxis, no exercício da violência, no seu projeto de libertação.”

e

“o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado natural, que só se curva diante de uma violência maior”.

Eu nem sabia o que era uma colônia, embora lembrasse que a palavra havia sido martelada pra mim na escola. Eu não entendi nada, mas achei o máximo.

— Cê estuda muito, né?

— Sim. Mas nem penso como estudo, não. Eu só gosto muito de ler os mitos dos outros.

— Eu também amo ler.

— Pô, massa. Que que cê curte?

Lembro que eu fiquei nervoso na hora de responder. Queria muito impressioná-lo, mas não tinha ideia do que impressionaria aquele menino danado, tranquilo, sentado sobre suas próprias pernas. Camiseta do Racionais e chinelos.

— Paulo Coelho, Augusto Cury. O que cai na minha mão eu leio. Asimov.

— Legal. O Asimov é legal. Os outros eu nunca li.

Era o único que eu nunca tinha lido.

— Cê vai ser doutor, vai?

A garota interrompeu antes que ele respondesse, ainda sem olhar pra gente.

— Anel de dotô só serve pra não ser preso na senzala.

— Égua, ‘xe de besteira. Não liga pra ela, não. Ela tá puta consigo mesma, porque o programinha que ela tava inventando não funciona. Aí fica assim com tudo.

— E eu tou errada? Vai dizer. Diploma é uma palhaçada. Um bando de rico batendo punheta um pro outro. Fora um ou outro cientista.

Ele pareceu ignorá-la, voltou-se pra mim, respondendo.

— Eu não tenho muita paciência pra universidade. Mas também eu nunca estudei em escola. Eu só gosto de estudar língua e mitologia. Já fui ver umas aulas na UFPA, mas o povo é muito empetecado. Não todos, mas a maioria. Meio metido a besta.

Renato respondeu no mesmo tom, imitando.

— Nunca fui muito assim de aula, também não, tem professor que é muito metido a besta mesmo. É que nem juiz.

A menina já veio se metendo de novo, sua voz abafada pela carcaça do computador.

— Juiz é uma das piores coisas que já andou sobre a terra. Quando chegar a nossa hora vão ser os segundo no paredão.

Eu ri pra caramba.

— E primeiro é quem?

— Como quem?

— Os cana?

— Cana é capanga. Primeiro são os rico, ué. Mas rico-rico mesmo.

Ela fala isso e volta a cabeça pra baixo, a testa enfezando um rosto delicado e infantil. O irmão faz uma cara de enfado e volta os olhos pro texto impresso em cima da mesa. Não tinha base nenhuma o tanto que eu já amava aqueles dois.

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