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Fábio começa a enviar e-mails compridos pra Murilo quando não o encontra online. Era como se Murilo se tornasse o alvo perfeito para tudo que ele sentia vontade de dizer, alguém com uma sensibilidade e cultura extremamente próximas da sua, um domínio extenso de referências em comum de que eles se serviam toda hora ao conversarem. Mas não devia ser só isso. Fábio tinha muitos amigos espertos nos seus círculos de amigos em Goiânia, Brasília, São Paulo. Murilo inclusive podia ver parte desta interação. Talvez a distinção de Murilo fosse em parte de ser isolado desses outros circuitos de carne e osso, maiores e menores, nos quais Fábio se via inserido.

Para: mafrye@gmail.com

De: FBCarvalho@gmail.com

Assunto: HEY MR DJ

FALA os murilo


Ontem eu pedi comida japonesa pra jantar, um combinado enorme de sushi e sashimi, e daí passou uns quarenta minutos e o troço não chegava, daí eu não lembro exatamente se esqueci de ter pedido a comida japonesa ou se simplesmente não consegui dar a relevância devida àquela informação, por um momento, sei que liguei pra uma lanchonete tradicional aqui e pedi dois sanduíches enormes. A larica na hora um continente. Meia hora depois chegam as duas encomendas em casa e eu não sei como explicar, eu tento receber na porta de forma que ninguém veja, mas a minha mãe me vê na cozinha com aquilo tudo em cima da mesa e eu digo apenas que estou com muita fome, pra não ter de admitir que eu sequelei de forma tão retardada.

Eu naturalmente começo a pensar no tanto que aquela cena é ridícula, uma demonstração histriônica da minha vida e da insciência bruta de seu privilégio. E eu começo a encarar aquelas duas refeições enormes ali diante de mim, que eu estou tentado começar a comer, e a pensar na vasta extensão relacional técnica e material necessária para que aquilo ali chegasse na minha casa. Eu penso não só nos dois restaurantes que mandaram seus motoboys pra minha casa, e em quem trabalha neles, mas na cadeia de produção daqueles ingredientes cuja combinação resulta naquilo pronto ali. Eu lembro de repente do fato que engoli meses atrás, que para cada pequeno pedaço de atum que você come você poderia encher uma mesa inteira de vida marinha que é morta acidentalmente e descartada, um fato cuja proveniência eu nem imagino, que nem lembro se é preciso ou não, mas que preenche a minha imaginação vividamente, e eu quase consigo ver a mesa da cozinha aqui de casa repleta de seres marinhos diversos trucidados, arrebanhados por redes enormes correndo debaixo d’água e varrendo tudo que encontra. Eu desisto de comer o peixe, decido deixá-lo pra depois, tentando afastar aquela imagem, mas quando vou comer o sanduíche de carne, bacon e molho de churrasco uma imagem semelhante se apresenta, de vacas e porcos hipertrofiados revolvendo no próprio excremento, confinados.

E agora eu consigo ver todos os objetos da minha casa como elementos dentro de uma teia expansiva de violência, processos vastos e inumanos se movendo dentro de algoritmos rigidamente articulados, rápidos e acelerando como motosserras em desenhos animados. A imagem seria muito mais específica se eu não fosse tão ignorante, mas considerando as minhas sérias limitações a respeito de política, economia e praticamente qualquer aspecto técnico de qualquer área séria, eu só consigo imaginar vultos obscuros agindo sobre as coisas. E sentir a culpa da minha posição como a marca de uma maldição. O que eu sei é que eu tenho uma fortíssima impressão de que aquela extensão horrível de coisas está igualmente implicada em tudo, em qualquer objeto mais ou menos relacionável às forças industrializadas do mundo e do capital.

(É uma visão assustadora, e parte de mim precisa ficar quebrando esse humor grave com uma voz irônica que tenta a todo tempo deixar claro que reconhece como é típico e desinteressante aquele clichê do menino privilegiado que fuma um e fica tendo intuições vagas, imprecisas e autoenvolvidas sobre a seriedade violenta do mundo).

E agora eu não consigo nem comer o sanduíche, o que torna a situação ali ainda mais ridícula e constrangedora, e eu realmente não sei como vou explicá-la para a minha mãe.

FIM DE TRANSMISSÃO

PUNHO DOS BRÓDERS

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(tentei colar aqui o famoso adágio

mas como se vê a diagramação saiu toda cagada,

quem sabe aí ela se recompõe certinho?

Eis o mysterio da fé.

FICA A INTENÇÃO & O SENTIMENTO, Ó >MURILO SINISTRINHO DEUS MENINO DA GRANDE ÁREA <, com um abraço do seu, do nosso

FBC

(Além de mais íntimos, os e-mails ficavam cada vez mais dramáticos, escritos com um estilo cada vez mais estranho).

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