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Eu não sabia de nada dessa confusão pavorosa que ela tinha arrumado até ir lá na casa deles um dia, no Bom Retiro. Emerson já devia ter bem uns treze ou quatorze anos. A Linda me ligou assim que descobriu que eu tava em Belém de novo, na antiga casa da minha mãe. A gente se conheceu logo antes de eu sair de lá. Tinha ido pra São Paulo pra entrar na ordem dos Beneditinos, mas não deu muito certo. Tava bebendo e cheirando pra caramba e indo em encontro dos AA ou dos NA sempre que dava, onde que eu tivesse. Falando, cada vez que ia, que tava há seis meses sóbrio, há dois anos sóbrio. Isso às vezes tando bêbado ainda, a cara de todo mundo denunciando que podiam sentir o cheiro entranhado nas minhas roupas. A Linda não falou nada no telefone, só chorou por uns cinco minutos. Quando começava a falar, vinha uma falta de ar nela. Uma agonia danada. Eu falei que ia visitá-la. Quando eu tou mais na merda mesmo é que mais me disponho a ajudar os outros, é engraçado. Não quero me deixar sozinho comigo mesmo e nem com gente que também bebe e cheira. Cheguei lá e tava ela e o menino num apartamento apertado e muito fedido, com cheiro de suor e mofo, lotado de revista, saco plástico e caixa. Ela é dessas pessoas que não consegue jogar nada fora, vive soterrada de tranqueira, de revista velha e saco plástico e caixa de sapato dentro de caixa de sapato e até recibo de padaria, como se houvesse como aquilo ainda servir pra alguma coisa em algum momento. Hoarder, chamam na minha língua. Ela sempre teve aquilo, mas parecia que tinha piorado desde que não morava nem com a família e nem com as irmãs e nem com os padres. Ou seja, desde que tinha pego o Emerson pra cuidar. Ela que deu o nome, em homenagem ao escritor norte-americano, o seu favorito. Achava fascinante que no Brasil aquele fosse um nome próprio. Como Lincoln. Ficava emocionada de ver lindos rapazes negros brasileiros chamados Lincoln e Jefferson. Me falou isso em mais de uma ocasião. O menino ficou tocando teclado com fone de ouvido enquanto a gente conversava, mas olhando pra gente com uma cara de quem tava entendendo tudo. Schumann, ele disse que era. Mas a gente não ouvia. Só ouvia as teclas. Os olhos puxados e reservados, uma puta cara esperta. Ela só reclamava dele e falava que tinha a cabeça endemoniada, embora fosse mais cristão ainda que ela, ainda mais severo. Ele achava que ninguém era cristão coisa nenhuma, nem o Papa, que se fosse tava todo mundo miserável andando na rua com os mendigos e as putas e indo visitar os presos na prisão. Todo dia. Ela não admitia, mas esses comentários faziam com que ela achassse a sua própria fé moderada, em comparação, quase a de uma ímpia. Ela culpava a internet por botar ideia fanática na cabeça, mas deu pra notar em cinco minutos ali dentro daquela casa sufocante e toda agoniada que ela isolava o moleque de tudo, toda e qualquer realidade concreta, com medo que tirassem ele da mão dela se descobrissem como que ele chegou ali. Tinha medo até de ser presa. O dinheiro vinha da igreja, daqueles fundo secreto que eles têm pra treta, pra padre abusador e coisa do tipo. Eu ajudei a arrumar isso pra ela na época, ainda estava me desligando da Igreja, mas não tinha nem entendido a situação direito. Fiz a pedido de um senhor que respeito muito, seu Adamastor Beirão, arcebispo de Goiânia.

O menino praticamente nunca saía de casa. Falava português com um pouco do sotaque dela de estadunidense. Não tinha certidão de nascimento nem RG, nunca tinha ido à escola, era ensinado por alguns professores particulares, mas principalmente por ela mesma. Sabia o Gênesis, Êxodo, os salmos e o Evangelho de cor e salteado na tradução do Rei Jaime antes dos doze anos, assim como todas as temporadas de Seinfeld, o produto cultural mais escandaloso que Linda permitia que ele consumisse. Linda mentia pra ele a história de sua concepção desde sempre, mas de uma maneira ansiosa e pouco planejada. Sempre disse que seus pais haviam morrido num acidente de carro que ela presenciou, no Goiás, e tinham pedido para Linda prometer cuidar dele. Mas uma vez disse que era só a mãe. Ela não era também exatamente a pedra mais brilhante da joalheria, digamos assim. Ele fazia perguntas o tempo todo, com uma cara inocente, dava a impressão de que era bem mais esperto que ela. Ela se embananava toda quando confrontada, eventualmente escorregou a admissão de que ele tinha uma irmã gêmea lá no Goiás ou no Tocantins, numa tribo. Desde então ele só falava nisso, falava que se não levassem ele pra conhecer a irmã ele ia fugir pra encontrá-la, que a Linda não era a mãe dele, que não sei o quê. Ela ficava ainda mais branca do que já era quando pensava nessa possibilidade. Depois de passar uma tarde ali, eu vi que não tinha jeito. Alguém tinha que tirar aquele moleque dali e levá-lo pra conhecer a irmã, senão um ia acabar matando o outro. E esse alguém acabou que teve que ser eu mesmo, Dennis O’Leary, ex-padre, solteirão convicto, toxicômano semi-confesso, um danado incurável que nunca tinha criado uma criança na minha vida.

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