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Com frequência Murilo se perguntava como é que as pessoas se conheciam antes da internet. Ao contrário do mundo lá fora, parecia-lhe tão fácil conversar e ser compreendido por ali. Nos canais certos, bem entendido. Ele logo aprendeu a usar as referências específicas de cada grupo e confiar que a pessoa as apanharia. Se não fosse a internet ele provavelmente jamais teria feito amigo algum.

Fábio começou, aos poucos, a ser mais aberto a respeito da sua vida pessoal. Eles ainda conversavam basicamente sobre os mesmos assuntos, recomendavam filmes, livros, canções e palestras um pro outro, mandavam GIFS memoráveis ou compartilhavam citações.

Mas agora Fábio começava a contextualizar melhor as circunstâncias reais da sua vida, dizia que estava num quarto de hotel cinco estrelas em Tóquio, tendo acabado de chegar de um clube japonês que reproduzia exatamente o ambiente de um bar mafioso americano da época da proibição, ou que havia acabado de comer uma atriz em Nova Iorque no banheiro dum show, ou que estava prestes a ver a orquestra sinfônica de Berlim com a família da namorada. Fábio a princípio parecia constrangido de contar esses detalhes, com medo de parecer exibido ou arrogante, o tipo de babaca que gosta de se impor diante de amigos que têm muito menos grana do que ele, mas depois das várias insistências de Murilo de que lhe interessava ouvir sobre tudo isso ele foi cedendo.

— É claro que eu tenho interesse de ouvir essas coisas. Eu não tenho como escrever ficção se eu não saio de casa, entende?

— Entende.

— se eu não vivo no mundo, não conheço gente. até a porra do Proust tinha lá uns amiguinhos pra montar o barão e a Odette, né.

— É verdade. Imagina os maladrinho que acabaram virando esse povo e nunca descobrem. Sempre penso nisso.

— bicho, então, na real, posso te pedir uma parada?

— hm

— eu já pedi isso de uma galera, na real. tu sabe que eu mal saio de casa. eu queria que tu me contasse umas paradas, me desse tipo exemplos de diálogos, de cenas concretas e pontiagudas das galeras onde tu anda, sei lá, detritos de qualquer tipo que tu quiser me mandar.

— Bicho entendi exatamente a pala

— Não precisa ser pessoal, não, mas me dá, sei lá, personagens, vozes e cenas e coisas que eu possa tentar adotar e montar numa ficção. Detalhes concretos, contextos, esse tipo de coisa, entende?

— Bicho já entendi já falei, v a m o n e s s a

— hahaha

— te ajudo, na pior das hipóteses isso me ajuda também, como exercício.

— É, claro. como o Bábel falando pra si mesmo descrever tal coisa, <O que é um jornalista soviético?>

— <O que é um bolchevique?>

— Haha, sim. <O que é um playboy goiano?>

— hahaha, *sim*

— <O que é um estudante de antropologia da UnB?> < O que é um moleque doido vidaloka?>

— *exatamente*

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