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O cineclube nasceu com o fato improvável e maravilhoso de Dennis ter conhecido, no ano da graça de 1999, o casal Vanuse e Silvinho. Juntos, os dois tinham desde o início da década um bar chamado Encouraçado Botequinho, onde vendiam salgados, cigarro e bombom (além de, claro, cerveja e cachaça, conhaque barato e batida de côco).

Na primeira vez que Dennis passou pela fachada, achou que tinha entendido errado o nome. Eram só sete da noite e ele já tava bem bêbado. Riu e voltou cinco passos pra confirmar, era aquilo mesmo. Já foi pedir uma cachaça com um sorriso enorme, perguntando pros donos de qual era a do nome. O pai da Vanuse tinha trabalhado no cinema como projetista, ela cresceu vendo filme antigo e de todo tipo, já o Silvinho adotou a paixão da esposa. Os dois também eram comunistas de cantar a Internacional quando bem bêbados. Dennis começou por chamá-los pra ver filme no seu projetor semi-profissional, no casarão antigo em que morava com os gêmeos indígenas. O casarão ele herdou da mãe, irlandesa que veio para Belém ganhar dinheiro com borracha nos anos 20 (um pouco tarde). Depoi de alguns meses e encontros intervalados, o grupo foi crescendo e os encontros se firmando em toda sexta, Dennis botando pra jogo toda sua impressionante videoteca de VHS e laser-disc cultivada desde os anois oitenta e carregada com ele de Dublin a Belém em duas caixas enormes. Chegou a escrever algumas críticas para um jornal pequeno de Dublin, mas sobreouviu uma mulher muito bonita criticá-las, uma vez, num bar, e nunca mais escreveu uma página sobre cinema.

Renato ficou ouvindo de olhos fechados o povo conversando baixinho no final do filme, sobre aquilo que tinham acabo de assistir e também sobre a vida do diretor, que além de filme havia feito várias outras coisas. Morreu de forma violenta, pelo que conseguiu entender, mas os detalhes de sua história foram se misturando a um sonho dele próprio espião, de terno, subindo as escadas de uma casa parecida com aquela onde estava de fato. Acordou não sabe quanto tempo depois, a sala toda quieta e quase toda escura, sem mais ninguém, de janelas fechadas, quente, suas costas todas suadas pregando no tecido.

Imaginou que tava sozinho e já ia constatando muito feliz que poderia muito bem se fazer de sonso e dormir ali mesmo, quando ouviu uma voz vindo do canto da sala ao lado, onde ficava a escada pro andar de cima.

— Você tem onde dormir hoje, garoto?

Demorou a achar a origem dela. Dennis sentado no escuro, na mesa de jantar, sua silhueta recortada de forma imprecisa junto com o espaldar da cadeira, a pouca luz concentrada no copo com um resto de uísque aguado.

— Tenho não.

— Cê é de onde?

— Do Piauí.

— Teresina?

— Interior. Pedro II.

Dennis fez que sim com a cabeça, continuou calado. Renato ficou em dúvida se a resposta tinha melhorado ou piorado sua situação.

— Hoje cê pode dormir aí. Amanhã, no máximo. Mas cê tem que arrumar um emprego, alguma coisa. Aqui não é a santa casa.

— Sim, senhor. Obrigado.

— Senhor só tem um, rapaz. E não sou eu não.

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