65.

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Tamires continuou deitada onde estava, no pufe, por quase uma hora depois da sua visita ir embora. Quase sem se mexer, alternando uma e duas mãos apertando as têmporas com o dedão. Nílson nem imaginava que havia desencontrado de Renato por um dia, apenas. Esteve lá por dias e vazou escondido de madrugada, Tamires só foi perceber de manhã.

Ela despistou Nílson falando que não via o figura tinha tempo, mas falou a verdade quando contou das loucuras que ele andava falando quando esteve lá. Ela percebeu desde nova, com os pais, que suas mentiras soavam mais verossímeis se ela as misturasse com verdades. E estava preocupada com o Renato realmente estar acreditando que tinha viajado no tempo, ou coisa parecida. Já tinha meses que eles tinham parado com os sequestros e tinham concordado manter distância uns dos outros por um bom tempo. Mas ela mesma chegou lá com ele e pediu para abrigar o Renato. Estava muito tensa com algo, o que era inquietante de se ver. Ela que sempre, sempre estava no controle da situação.

Tamires foi até o computador, que estava ligado no quarto. Os passos arrastados numa chinela felpuda e velha de um hotel fazenda no qual a mãe de Simone ficou hospedada mais de quinze anos atrás, em Santa Catarina.

Apesar do calor abafado ali, detido por janelas fechadas, Tamires usa calça e camisa de moletom, cinza-escuras, de manga comprida. Ela tem 1,68 e pesa, no momento, por volta de cento e vinte quilos. Usa óculos profusamente arranhados e tem quase sempre a testa emburrada de irritação ou ansiedade.

Ela cai na cadeira do computador, que reclama. Um dos encostos de braços pende caído pro lado. Acende a tela tocando no mouse e logo começa a escrever. Endereça um e-mail para acertainslantoflight@gmail.com.

— Eu sei que não é pra usar esse contato à toa.

Apaga tudo.

— Ei, eu sei que você falou para só falar contigo numa emergência.

Apaga.

Pega um cigarro de palha pela metade que encontra na mesa e acende. Murmura bem fraquinho uma música sem chegar a enunciar as palavras.

Sai da casa e abre a porta do quartinho dos fundos, que já era entulhado antes dela chegar e só foi piorando com o seu descuido. Tá lá entre cadeiras de plástico mancas ou mambembes, telhas quebradas e inteiras, restos de uma máquina de cortar grama e ferramentas diversas sujas, soltas, algumas quebradas, outras enferrujando, pilhas de jornais e revistas velhos e desenhos ruins (os bons estão guardados em pastas lá dentro). O volume do tamanho de uma moto, mais ou menos, maior num dos lados, coberto por uma lona azul.

Ela tinha aparecido do nada um dia no jardim, de madrugada. Um ano e meio antes. Depois de um bom tempo sumida. Tamires nunca a tinha visto tão séria. Ela era sempre a menos assustada dos três, mesmo nos momentos mais tensos. Até a voz parecia diferente.

Tamires tava olhando pela janela ouvindo música e fumando um palheiro quando percebeu os olhos agachados num canto, no escuro. Quase morreu do coração até reconhecer, um segundo depois. Ela sempre teve olhos que pareciam guardar uma luz própria.

— Por que você faz isso?

— Você nunca responde quando eu bato na porta.

— É porque você se acha foda fazendo isso, não é?

— Eu não posso ficar muito, Tamis. Eu vim porque você é uma das únicas pessoas em quem eu confio de verdade.

— Olha o drama.

— Aquele quartinho de trás ainda tá vazio?

Tamires demorou para responder, tentando entender o que aquilo tinha a ver com qualquer coisa.

— Tem só um bando de tranqueira, mas quase tudo dá pra jogar fora ou remanejar.

— Tem como eu deixar um negócio lá por um tempo? Não é tão grande.

— Que negócio?

Ela sorri aquele sorriso largo e raro dela, que quase lhe fecha os olhos.

— Então, é melhor que cê nem saiba.

— Não é uma pessoa, é?

Ela riu. Era muito difícil ela rir fazendo barulho. O sorriso era aberto e generoso, quase vulnerável. Por isso mesmo ela segurava. Dava até um orgulho quando acontecia.

— É uma máquina.

— Cê roubou?

— Eu que fiz. Eu e mais uma galera, né? Mas com planos que eu roubei. E que a gente modificou.

— De quem?

— Melhor você não saber. Serião. Pelo menos não agora.

Tamires volta até a sala e descobre um dos cantos do mural que cobre todas as quatro paredes e escapa até o escritório empoeirado e cheio de caixas. O mural não parece terminado. No canto que ela descobriu há uma parte mais de baixo toda pintada em cores refulgentes e espessas que se derramam pra fora da parede, enquanto em cima se vê em sua maior parte rascunhado em linhas pretas e grossas de lápis e carvão.

Na parte de baixo há um estádio de futebol com demônios imensos e coloridos na plateia, dois irmãos indígenas sem camisa no centro, um deles com uma bola debaixo do braço, o outro batendo embaixadinha com a própria cabeça. Em cima do estádio, como que pairando por cima de tudo, o esboço de um corpo magro e mulato todo esticado, estrebuchado, líquido, como se dançasse ou tivesse espasmos.

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