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Dentre os vários assuntos urgentes e recorrentes de Fábio, o único que não interessava tanto a Murilo era a legalização da maconha e de outras substâncias.

Não era raro que quase qualquer outra conversa o provocasse, no fórum ou em chat, a começar a falar da guerra às drogas e, daí, fatalmente, da crise carcerária brasileira, da superlotação e de sua condição escrota em geral, do fato de que 40% dos presos são provisórios, que muita gente ficava preso além do tempo que devia pela lentidão dos tribunais, das execuções policiais feitas quase abertamente, das milícias e esquadrões da morte e do apoio quase irrestrito do Judiciário e do Ministério Público.

Pelo menos uma vez por mês Murilo via o amigo entrar numa mesma sequência argumentativa que terminava falando que a cocaína devia ser a maior indústria do mundo e que a gente nunca via uma pessoa de terno sendo presa por ligação com o tráfico e nem do lobby violento que não devia ser feito contra a legalização. Isso quando ele não começava a somar os mortos no México, Brasil, El Salvador e Indonésia pra dizer que a Guerra às Drogas era de longe o mais sanguinário conflito geopolítico das últimas décadas, muito mais violento que qualquer confusão no Oriente Médio, com a diferença que era um conflito que poderia terminar – ou pelo menos ser radicalmente transformado – com algumas canetadas da ONU e dos países de primeiro mundo.

Murilo concordava que aquilo tudo era errado, concordaria até que era absurdo, mas nunca conseguiu acessar muito bem o sentimento de indignação política que fazia o amigo vociferar tanto. Uma coisa era ficar com raiva, isso ele sempre entendeu, mas querer veicular sua indignação e agitar alguma bandeira por aí sempre lhe parecia um jeito de querer carimbar a sua virtude, querer que alguém batesse palma para a justeza do teu sentimento. Se qualquer movimento prático, do conserto de uma torradeira à construção de uma fogueira, parecia a Murilo quase impossível, qualquer agitação política efetiva parecia ainda mais distante. Multidões pintadas de forma vaga num quadro impreciso. Como que alguém poderia achar a sério que ia conseguir mudar pra melhor alguma coisa no mundo? Mudar pra pior parecia sempre mais plausível.

Talvez fosse algo que as pessoas faziam como parte de seus infinitos rituais de acasalamento, Murilo pensava, como tanto daquilo que se chama de arte. Não tinha nada de errado com isso, claro, mas não era assim que ele funcionava, pessoalmente. Demarcar tudo o que tá errado do mundo devia ser uma forma de encontrar os parceiros adequados, sexuais ou não. Era no mínimo um jeito de criar identidade como qualquer outro.

Ou talvez a indignação de Fábio viesse mais da sua vontade pessoal de fumar mais livremente, mesmo. Um dia, no meio desse assunto, ele perguntou.

— E cê fuma muito?

— Ah, não muito.

— Bt fé.

— Na real eu fumo pra caralho. É tipo uma parte grande & séria da minha vida

— Haha, sério? N imaginava.

— Pois é. Quase todo dia desde os quatorze, quinze. E tu, fuma?

— Ah, só de vez em quando.

— Vamos fumar um juntos um dia desses na webcam, haha. Eu faço isso com altos amigos meus q moram longe

— Vamo sim. Mas hoje eu tou sem.

Murilo não sabia porque tinha mentido. Ele nunca tinha fumado maconha, na verdade só tinha tido uma oportunidade, uns amigos de um primo mais velho estavam fumando escondidos num churrasco de família em Minas. Ele ficou por muito tempo tentando conceber o que diria se eles oferecessem, tendo decidido por ‘opa’, seguido de uma modulação agradecida dos ombros (que nem se fez necessária, ninguém lhe ofereceu nada).

Ele agora considera comprar. Mas como que se faz isso? Não tinha nem idéia. As pessoas têm códigos? Elas se enxergam na rua e trocam olhares significativos? Era mais um dos sistemas dos quais Murilo se sentia excluído e que ele não tinha nem ideia de como tentar penetrar. Lembrou-se que no primeiro semestre da Universidade tinha ouvido algumas vezes algumas piadas envolvendo a 109 sul, no sentido de que lá seria um ponto para maconheiros, aparentemente (faziam piadas recorrentes associando a quadra a um colega com tipo de hippie reggaeiro).

Murilo imaginou longamente situações distintas nas quais ele ia pra 109, zanzava por lá um tempo até encontrar alguém que pudesse parecer adequado, talvez um desses caras que pedem pra vigiar seu carro, um que tivesse uma pinta mais alardeada de espertalhão, parecendo sugerir vias sutis de comunicação ali na maneira dele de cumprimentar as pessoas.

Em todas as cenas que Murilo imaginava alguma coisa dava errado, ele se comunicava de maneira idiota, o homem se ofendia quando entendia o que ele estava sugerindo, deixando ele mortificado na condição automática de playboy racista, ou o homem pegava o seu dinheiro e não lhe dava nada, ou helicópteros desciam imediatamente com homens do BOPE pisando na sua cabeça e dizendo que ele era uma pessoa desprezível. Ele chegou a sair de casa para caminhar até lá, mas voltou antes de se distanciar cem metros.

No lugar, então, ele comprou seda e tabaco na banca e na vez seguinte que encontrou Fábio online, propôs que eles fumassem um juntos na webcam, enrolando o seu baseado falso com tabaco (e não mostrando demais na câmera para que Fábio não visse mais do que a estrutura dos seus gestos). Fumou o seu tabaco lentamente, baixando os olhos um pouco e modificando levemente sua impressão quando percebeu que Fábio já parecia um pouco diferente, um sorriso um pouco mais arrastado, querendo comentar qualquer assunto longamente, como se tudo fosse interessante.

Conversaram sobre todo tipo de coisa. Murilo às vezes tinha uma impressão de Fábio ser um tantinho diletante na maioria das coisas que ele botava banca de dominar. Ele se achava um tanto mais culto do que o amigo pra muita coisa (e a competição entre os dois era evidente, ainda que nunca declarada), mas poucas vezes tinha conhecido alguém com um arsenal tão vasto de cultura popular – tanto de coisa boa quanto de detrito – o que ele achava bem impressionante, à sua maneira.

Ele podia ver o quarto do Fábio pela imagem da câmera. Parecia enorme, uma estante de livros enorme e linda, de madeira escura, com vidro cobrindo cada prateleira, ocupando uma parede inteira. Uma cama enorme, pôsteres de filmes na parede (A Idade da Terra, Acossado, Stalker) e uma guitarra no fundo. Um quarto que tinha um aspecto adolescente e que sugeria toda uma vida muito confortável, com todos os mínimos interesses e caprichos estimulados e garantidos materialmente de maneira prodigiosa a todo momento.

Já o seu quarto ficava todo escuro na imagem da webcam, apenas a sua figura meio espectral mal iluminada pela tela do computador, a pilha de livros e papéis em volta dele e a parede próxima indistintas num escuro pixelado, um verde-cinza de blocos que pareciam se mover sozinhos, como se os algoritmos da câmera ficassem a todo tempo tentando de novo encontrar a melhor forma de combinar aquele tantinho precário de luz ofertada.

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