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A segunda vez que ele viu uma foto do Fábio foi por coincidência. Ele foi cortar o cabelo no barbeiro mais perto da sua quadra, chamado Antonio’s, que demorava quase uma hora pra concluir um corte e cortava muito mal, mas que era um velhinho pernambucano simpático que já não falava coisa com coisa e que Murilo adorava acima de boa parte das coisas do mundo.

Sempre que Murilo se sentava na cadeira de couro rechonchuda e descascada, seu Antônio sempre lhe entregava a pilha de revistas da barbearia, que incluía Turma da Mônica, revistas de fofocas e celebridades e revistas masculinas com mulheres peladas e fotoxopadas. Todas datando de anos atrás. Murilo teria vergonha de ler em público tanto uma revista infantil quanto uma revista dessas de mulher pelada, então acabava lendo as revistas de fofocas e celebridades. E foi folheando muito vagamente a revista, suas imagens registrando as informações num nível bem baixo de consciência, quase abstratas, que ele de repente notou uma figura reconhecida.

Demorou alguns bons segundos pra recuperar da cabeça a associação correta, entender exatamente quem era aquela pessoa. Tamanho era o choque de mundos. Mas assim que a associação foi feita Murilo tinha certeza absoluta da sua correção. Era o Fábio ali. De terno, abraçado a uma menina linda toda arrumada, num casamento de alguma pessoa rica indistinta que a revista tratava como se fosse de conhecimento geral (ou que talvez até fosse de conhecimento geral para o público da revista).

A legenda lia: “Fábio Carvalho, filho do Governador Anselmo Carvalho, com sua amada Letícia Bontempo”.

Murilo se viu involuntariamente falando baixinho:

— Ele é filho do Anselmo Carvalho, cacete.

— Que foi, meu filho?

— Nada não.

Anselmo Carvalho era o governador eterno do Estado de Goiás, uma figura bizonha. Foi nomeado senador biônico durante a ditadura e depois disso nunca largou mão do estado. Filho de Claudionor Carvalho, dono de uma empresa de ônibus turístico, foi transformando a fortuna ainda semimodesta do pai num império de transporte coletivo viário e, mais recentemente, numa empresa moderninha de táxi aéreo em franca ascensão.

O pai ainda tentava botar um verniz mais ou menos convincente de respeitabilidade, mas Anselmo já era corrupto de um nível escancarado, com escândalos tosquíssimos pipocando de meses em meses sem que ele nunca fosse condenado, escapando sempre com tecnicalidades processuais ou manobras políticas nos tribunais locais e superiores. Anselmo ainda havia sido recentemente implicado (por reportagens meio desleixadas e mal escritas, é verdade) em dois assassinatos de quinze anos atrás, logo antes de virar governador.

A figura dele era cômica, uma peruca e um bigode tingidos de dois matizes distintos de acaju, um corpo disforme em ternos caros desarranjados, baixinho com uma corcunda arrastada de dromedário, braços compridos que pareciam sair do meio do seu tronco, uma expressão quase invariável de um vazio absoluto, tão inexpressiva que era como se aquele fosse um corpo inanimado, um cadáver artificiosamente articulado por forças exteriores. A única coisa que o fazia sair dessa falta de expressividade eram jornalistas que lhe tentassem tirar do sério. A sua melhor foto, que brevemente havia corrido forte entre estudantes universitários goianos, modificada de dezenas de maneiras, o mostrava erguendo um tijolo e tentando jogar num fotógrafo que tirava fotos suas bêbado saindo de uma lancha em Angra dos Reis com uma menina que até podia (mas certamente não aparentava) ter mais de dezoito anos.

Murilo já havia depreendido por detalhes aqui e ali que o Fábio tinha grana, sabia que ele tinha seu próprio carro sem trabalhar e conhecia bem diversos cantos do mundo. Mas agora ele via que o Fábio era multimilionário (ou enfim, que sua família o era) e que esse dinheiro tinha todo esse rastro escroto. Ele não sabia de que forma que isso mudava a imagem que ele tinha do amigo, mas mudava. Alguma espécie de readequação da imagem dele se fazia necessária, ele achava, ainda que Murilo ainda não soubesse qual.

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