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A sua mãe, Elizete, saiu do trabalho (na CAESB) quando ele nasceu e desde então sempre teve insônia. O trabalho em casa também a cansava, mas era mais espaçado ao longo do dia. Ela cozinhava todo dia para o almoço, mas quase nunca para o jantar e passava o dia arrastando pequenas tarefas de casa longamente, protelando-as a cada mínima etapa até que que tomavam quatro vezes o tempo que elas estritamente requeriam. Roupas ficavam perto do ferro de passar por horas, ela ia tirar um cochilo, tomar um chá, assistir partes soltas de algum programa. Ela não parecia gostar praticamente de nada na televisão, mas a deixava ligada o tempo inteiro, comentando vagamente o que se agitava na tela, que um carro ia bater no outro, que aquele sobrancelhudo com certeza tinha matado a menina, que o Iraque não agüentava mais de tanta morte. Todos os eventos pareciam iguais para ela, todos vagamente preocupantes e temerários nas suas imagens mais imediatas, mas finalmente tolos e desimportantes (o que ela expressava bufando de incredulidade no final de toda reação). Como se no final das contas fosse só televisão, nenhuma imagem ali guardasse uma relação séria com nada, a ansiedade só encontrava ali um objeto momentâneo que se esfacelava no instante seguinte como asa de mariposa.

Murilo às vezes se sentava com ela na televisão, um gesto que ele não sabia vestir muito bem, sentando no outro canto do sofá e perguntando o que estava acontecendo no filme ou seriado, o que ela respondia com detalhes descontextualizados e incompreensíveis (“o advogado mentiu pra ela que ela não tem acordo com a promotoria porque ele quer levar o caso pro tribunal”, sendo que Murilo nem sabia quem eram os personagens e que seriado era aquele) que ele nunca sabia se eram incompreensíveis por descaso ou incapacidade da mãe.

A afeição da mãe era pontual, tanto no sentido de ser confiável quanto de estar delimitada em gestos discretos. Infalivelmente expressa na cama que ela arrumava, sorrisos de vez em quando, boas noites com beijo na testa e rosquinhas Mabel e Toddynhos que ela comprava no supermercado fingindo ser pra ela. Ainda assim isto nunca ganhava exatamente pra ele a impressão de um sentimento muito agudo ou individualizado. Parecia a expressão duradoura e convicta de uma abstração, um dever materno seriamente absorvido que jamais envolvia qualquer particularidade do Murilo, jamais parecia se concentrar em qualquer aspecto da sua pessoa. Murilo percebia isso com força, mas não culpava a mãe. Um dia observando a si mesmo no reflexo fraco do vidro do móvel da televisão, seu cabelo revolto e sujo, dentando o plástico de um saco de batatas fritas de marca genérica, percebendo aquela figura, de repente veio a perceber que ele não era lá uma pessoa tão amável. Esse pensamento veio com bastante naturalidade, como quem julga um personagem num livro para responder a uma pergunta de prova.

Murilo era uma pessoa seca e destituída de personalidade, uma consciência quieta feita pra processar os vários discursos que o mundo fazia de si mesmo, as tantas imagens, os mapas infinitos. Mal falava com os pais há anos, fingindo de forma muito inconvincente durante as refeições e eventuais encontros pela cozinha ou banheiro que sequer escutava o que eles conversavam (quando acontecia de conversarem, sempre ímpetos curtos iniciados por ela e quase imediatamente resolvidos e encerrados por ele). Era isso que ele fazia, desde sempre, e não era uma vida ruim, vira e mexe ele entrava em êxtase. Mas aqueles hábitos resultavam numa figura pouco atraente, pouco interessante, pouco real. Murilo via nisso alguma graça.

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