54.

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O avô morreu num domingo. Foi encontrado de manhã segurando seus óculos, sentado no chão do banheiro, as costas apoiadas na parede, a cabeça tombada.

Murilo chegou da escola e não encontrou sua mãe em casa. O que nunca acontecia. O seu pai estava lá, com um saco plástico contendo duas quentinhas que ele tinha trazido do refeitório do trabalho. Um frango amarelo com pele, um arroz empelotado e duro. Ele queria saber porque sua mãe não estava lá, mas não queria perguntar. Ficou esperando uma brecha que não apareceu.

— Sua mãe teve uma coisa aí. Ela quer te contar só ela mesmo, quando chegar em casa.

A mãe chegou tarde, seis horas e tanto, e parecia muito cansada, toda desmontada de um jeito que Murilo nunca tinha visto, o cabelo dela emaranhado dando umas voltas por trás da orelha que ela nunca deixava dar (a não ser quando tava com pijama).

— O seu avô, querido.

Ela fez todo um discurso vago e esquisito envolvendo a alma e a idade e um senhor fraquinho que Murilo não conseguiu, nem remotamente, relacionar àquela força que ele conhecia. Ele compreendeu, imediatamente, o que aquilo queria dizer, mas não conseguia ver aquilo, a coisa não se apresentava.

Murilo gostaria de ter ficado mais triste com a morte do avô. Ele se preparou para um longo e detido período de luto, mas poucos dias depois ele já acordava tranquilo, demorava um bom tempo para se lembrar do que é que deveria estar lhe entristecendo e não estava (como quem lembra de um compromisso que fez há muito tempo). Ele ficou muito incomodado com aquilo, com a sua aparente falta de caráter e incapacidade de sentir uma quantidade apropriada de tristeza. Releu dezenas de vezes as notas que tomou, o ditado ali na última vez em que o encontrou, os fragmentos rascunhados de frases que ele sabia que estavam despedaçadas, incompletas. Ele tentava se lembrar das lacunas ali e do tom que o seu avô havia empregado. Mas tudo que restava eram palavras garranchadas e confusas, no máximo uns fragmentos de frase.

Copo na parede.

— A minha mãe não conseguia entrar no banheiro, eu que entrei.

— …

— Eu que tive que entrar.

— …

— Tava ele lá, né? Sentado, todo duro, muito estranho. Numa pose que nem era de gente. Tinha feito cocô. Tava amarelo e branco. Com uns treco roxo pela pele.

— …

— Ah, eu não tive nem que encostar nele. Já dava pra ver, já. Já dava pra ver.

— …

— Não, nossa, ela não quis nem ver. Ela não entrou no quarto.

— …

— Não sei se ela viu depois, porque eu tive que sair antes de chegar. Eu não aguentei.

— …

— Eu sei que eu devia ter ficado. Mas ela tava com a Neide, com o Júnio. Eu não ia ficar lá com aquilo. De jeito nenhum. Você sabe, Válter.

—….

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