53.

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Quando Nílson já estava no carro saindo de Ouro Preto, frustrado, foi que ele se lembrou, num lampejo, de ouvir de um conhecido em comum que Renato tinha entrado com um diploma falsificado na pós-graduação em História ali na UFOP e estudado lá por quase um ano até descobrirem.

Nessa época Renato vivia a maior parte do tempo como Soraia Kirche Sandra, terapeuta mítico-rítmica-tântrica, uma persona que Nílson só viu uma vez, num bar, e que demorou para reconhecer. Tinha um escritório no centro e dizia ter salvado a vida de dezenas de pessoas. Nessa única vez que Nílson encontrou Soraia, ela fingiu que não sabia quem ele era, a voz era outra, ainda que reconhecível. Parece que durante uns anos Soraia ganhou uma grana boa com sua prática. Cobrava tão caro quanto um psicanalista desses chiques, no seu breve e fulgurante auge, e tinha além de uma lista enorme de clientes uma puta fila de espera. Parou depois que um de seus rituais de transformação psicomágica-sexual terminou horrivelmente. Os boatos eram todos divergentes e absurdos demais para serem levados a sério. O fato é que Soraia não é vista em lugar algum desde 2012.

Nílson aproveitou que já estava em Ouro Preto para ir procurar o professor que teria orientado Soraia, cujo nome ele recuperou com um amigo que era bem mais próximo de Renato nesse período.

Ligou para o telefone do departamento que achou na internet e explicou, depois de apresentar o nome do professor, que queria conversar sobre Soraia Kirche Sandra. A voz da senhora simpática que tinha atendido azedou, mas falou que o professor César provavelmente só voltaria do almoço às três e tanto. Nílson falou que estaria lá três e meia. Quando chegou, pontual, encontrou César disposto, e até expectante talvez.

— Fica à vontade.

Nílson se acomoda como pode na cadeira, contornando as pilhas de livros e textos encadernados na salinha apertada do professor César, que cheira como o interior de um maço de cigarro mentolado. O campus da UFOP era agradável, mas aquela sala não. Nílson se sente muito mal perto de acadêmicos de humanas, o sangue sobe facinho lembrando dos piores momentos da sua graduação.

O César usava um brinquinho de argola e dava pra ver de longe que era daqueles que enche a boca até onde ela não vai ao falar os nomes de seus filósofos franceses favoritos. Nílson já o odiava profundamente.

— Você era o orientador da Soraia, então? Antes dela se desligar do curso.

— Isso, foi. Antes dela ter sido desligada, né? Melhor dizendo. Mas sim. Muito boa, ela, muito estudiosa. Quase brilhante, mesmo, eu diria. Pelo menos tinha seus momentos. Mas doida, né? Coitada.

— Doida como, você diz?

Ele olhou para Nílson meio enfezado, soprando fumaça do cigarro mentolado dele com o canto da boca no canto aberto da janela. Não podia fumar lá dentro.

— Olha, Nilson. Quando eu digo doida eu digo doida-doida, mesmo. Ela veio apresentar a dissertação dela aqui já tem uns dois anos, ou mais. Eu que armei essa apresentação um pouco antes da defesa, porque tava com medo, tinha começado a perceber o, assim, problema dela quando a gente foi encontrar uma vez faltando pouco tempo pra ela terminar. A qualificação dela tinha sido ótima, um pouco performática e exagerada, mas inteligente e bem-argumentada, muito culta, misturando Kierkegaard e Wittgenstein, mas depois disso ela já vinha falando umas coisas bem fora da caixinha, aí eu tive esse ideia dessa apresentação casual assim. Era pra ser uma coisa tranquila, só ela, eu, uma professora do departamento de religião e um amigo dela que virou meio discípulo sei lá o que é aquela porra.

— Um gordinho?

— Sabe quem é? Tava sempre com ela.

— O Miltinho.

— Isso. Acho que sim. Tava sempre com ela e é uma coisa esquisitíssima, parecia que venerava ela, sei lá, trazia e buscava pra lá e pra cá, tinha uma coisa servil assim, mas então.

Ele deu mais uma baforada bem arrastada no cigarro, a outra mão pegando no lóbulo da orelha.

— Olha, não tinha nada a ver com o fato de que a Soraia era um cara. Pra começo de história. Eu notei de imediato. Mas achei que ela tinha mudado de nome legalmente. Depois que a gente foi descobrir que era tudo falso. Que a senhora da secretária que catalogou os documentos teve um caso com ele. Ela. Enfim. Etc, etc. Vários colegas meus nem perceberam até o final. Não teve nada a ver com isso.

— Beleza. Mas teve a ver com o quê, então?

— O negócio é que a Soraia foi apresentar e você não tem ideia. Primeiro tinha uma porra de um negócio recortado até bonitinho assim de papelão, parecendo uma caixa que abria e tinha quase que uns retábulos dentro. Sabe? Aqueles trem religioso antigo, cheio de santo.

— Não.

— Não deu pra ver direito, mas acho que eram da própria Soraia pelada correndo e matando demônios e fazendo um bando de absurdice, parecendo esses trem antigo de santo, mas tosco e de papelão. E desenhado num estilo esquisito pra danar.

Nílson riu um pouco.

— Como assim? Ela trouxe isso e montou na sala?

— Ah, era meio que uma peça, né? A defesa dela. Mas porra, a gente teve que interromper no meio. O tal do Miltinho trazia lá umas marionetes, ela encenava, começava a falar com a voz dos caras, na língua deles, era uma putaria o negócio. Uma putaria. Cê não tem ideia.

— Sei.

— Tinha, assim, tinha umas notas que explicavam as coisas. Que tal boneco simbolizava a pulsão tecnicista de morte criativa, que tal outro boneco era o ímpeto formal, outro o ímpeto de gozo, as forças do matriarcado e da magia contra o falo tecnocrático do capital. Pior que eu ainda lembro do negócio. Que era complexo era. Era inteligente e tudo mais. Mas era um samba do criolo doido. É que tinha uma época que a gente assistia o vídeo meio de sacanagem. Mas isso só gente do departamento, claro, não era um negócio assim esculachado, com os alunos. Imagina. Tinha uma porra duma árvore que ele dizia que tinha diversos significados cabalísticos e que ia acendendo umas luzinhas na forma dum sistema circulatório. Mas não deu pra deixar ele terminar, não foi possível. Alguém teve que dar cabo do troço, eu nem lembro quem que acabou se levantando e acendendo a luz e fazendo uma cara de constrangida. Acho que foi a Tânia. Ficou todo mundo tenso um tempinho, mas aí virou um escárnio em minutos.

— O povo riu?

— Gargalhou por um tempo enorme, ela ficando lá possessa. Olhando com uma cara pra trás que parecia que tava de sacanagem. Inclusive tem uns que me juram de pé junto até hoje que acharam que ela tava de sacanagem. Não riram tipo zoando, acharam que era uma piada elaborada. Não conseguiam acreditar que ele tava falando sério. O que faz sentido, até.

— E aí?

— E aí ela começou a dar chilique, falando que tinha o direito de apresentar e começava a citar artigos de não sei o quê de regimento da constituição, todo um negócio.

— Mas qual era o tema, afinal? Ela falava de quê na peça?

— Primeiro de tudo que ela falava que falava com os mortos.

— Ahn. Um negócio tipo espírita, assim?

— Não. Quer dizer, sei lá. Mas acho que não, ele não falou de nada disso. E a gente foi super respeitoso aliás quanto a isso. Falou que a religião de cada um é garantida na Constituição e pelo povo brasileiro, essas coisas, tolerância, tal, mas que não tinha como aceitar um trabalho que, assim, se PREDICAVA né na conversa dele ou dela com gente morta. Como bibliografia, mesmo.

— Ela citava conversas dela com gente morta?

— O trabalho todo, no final das contas, era baseado nisso. Era uma demonstração inegável da imortalidade da alma e supostamente ensinando qualquer um a conjurar os mortos. Quase metade das citações tinham, ao invés de página, ano de publicação, etc, só a nota c.p.a., que no glossário tu via que era CONVERSA PESSOAL COM O AUTOR.

— Sei.

— Eu gravei. Foi foda ficar meio fingindo que eu ainda tava levando aquilo a sério, mas eu fiquei com medo de processo e de repente ela mudar a história e fazer a gente ficar mal, daí eu gravei.

— Ele abre o laptop dele e vira a tela um pouco na direção de Nílson. Fala com o que claramente é uma excitação mal escondida:

— Quer ver?

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