52.

Murilo nunca tinha visto ele tão aberto, tratando Murilo como um igual, ainda que nunca olhasse nos olhos dele.

— Júlio.

Murilo já tinha se acostumado com os nomes variados com que ele era denominado, já respondia com uma expressão pronta ao ouvir qualquer coisa.

— Estou preparado. Até que enfim, né? Tome ditado.

Tasso disse isso e ficou calado e sério olhando para frente até que Murilo se levantasse, pegasse da mesinha papel e um lápis e se aprestasse do lado dele.

-— Meus queridos irmão e irmã, Guilhermina e Henrique Tiagos.

— …

— Todo o repositório de afeto e atenção com que tive me dedicado nos últimos anos anda represado num depósito de sedimentos entocados e sotopostos de forma que não apenas o seu somatório como a sua unidade inteiriça deve ser afirmada como um único objeto perfeito e de toda acurácia rendido para vosso deleite e consumação.

Tasso fica em silêncio de novo por um tempo, olhando para frente. Parece estar prestes a contar algo engraçadíssimo.

—Escreve isso, Júlio. Escreve!

Tasso dita várias cartas em sequência, de pé, diante da sua mesa, como quem ministrava uma palestra. A mão esquerda nas costas, a direita segurando um fraque inexistente. O tom que ele adotava era muito estranho, Murilo não conseguia localizá-lo, relacioná-lo com a sua voz normal, com nenhum tipo de dicção que ele conhecesse. Todo formal, sedutor e sedoso, de repente rindo como uma criança, depois esbravejando com raiva.

Murilo escreveu cartas para Senhora Lota Soares e Isabel Bispo, senhor João Cabral de Melo (Pai), senhor Longino, senhor Guilherme Empso, senhora Clarice Lispék. Ele soletrava os nomes lentamente e de forma impaciente e arrogante, reclamava quando Murilo escrevia de outra forma e ditava depois os endereços. Todos os destinatários moravam no plano piloto. Calderão da Barca morava na 704 sul, Roberto Barrento morava na 306 norte. As cartas não costumavam passar de duas ou três frases, geralmente muito íntimas e calorosas, com beijos, abraços e algumas sugestões safadas (tanto com os homens quanto com as mulheres) que Murilo entendia só mais ou menos.

Depois de umas trinta cartas assim ele começou a ditar para Ganesha, Exu, O Espírito Santo, Anúbis, Hermes. Depois para o Capitalismo, o Comunismo, o Ocidente, o Pragmatismo, o Imperialismo, para a Pulsão de Morte, para a Repetição, para o Reconhecimento. Essas duas últimas duraram cada uma meia-hora, das quais Murilo conseguiu registrar um centésimo, se muito.

—Eu vou ditar a imaginação, Júlio, estou pronto. Chegou a hora.

— O quê? Eu não –

— A coisa distinta está aqui e a repetição tem que ser feita diante dela. Senão não dá. Senão não vai não. Isto já não sou nem cu dizendo, são só as catexias que sobraram aqui coitadas tentando me fazer compreensível, as caixinha. Eita. Tentando torcer as palavra e as figura direitinho pra que elas caibam.

Ele começou a rir baixinho e assoviado, de um jeito que lembrou a Murilo o escárnio do cachorro do Dick Vigarista.

— Sim, sim, eu sei. Júlio, vamos ter que fazer assim, do jeito que dá, do jeito que dando, com uma transcrição arregimentada e apressada de toda as fileiras de si, os hoplita correndo com a mão na bunda e travessas quentes, ai ai ai, cinco milhas distando agora das afrontas renovadas, a besta fera que chega finalmente, a coisa distinta que isprungou finalmente do meio da selva selvage, a onça, a própria. Os caminhões de operários mortos, as maldições imprecadas contra essa terra. Fúria só vira eumênide com muito parto, minha filha. Meu filho. Minha filha.

— …

— Eles sempre disseram que era uma comédia e eu nunca vi. Mas agora eu tou vendo, tá aqui, chegou o arco, dobrou já. Eita nós. Chão goiano. É uma comédia terrível.

Ele estava rindo entre as palavras, parecia se divertir muito, achar tudo realmente muito engraçado. Mas do nada sua expressão pareceu ensobriar-se, como que artificiosamente retomada diante de uma visita, quase constrangida. Ele colocou a mão na testa e fez uma expressão muito grave, preocupada.

— Desenterram-se mortos em montanhas, leitos contorcidos e secos de rios, cerros quase pelados, o constrito da garganta seca dessa elite podre saturando-se do seu próprio açúcar, e uma flora decídua se arrastando, lineamentos incisivos de uma rudeza sinistra. O mapa em que você se encontra, teu sertão. Que não é nosso, que não é a gente. Pedras são relógios. Esses monturo, os mortos que temos e a sua mistura, a farinha da imaginação que não é nossa, os sedimento, os preázinho e as jiboia. Os pecados dos pais girando os braços dos filhos como os de bonecos, o tempo todo todo todo.

Às vezes Tasso ficava minutos em silêncio entre cada oração, entre cada palavra. Algumas palavras eram interrompidas no meio e sucedidas depois da sua expressão passar por cinco modulações inteiramente distintas.

— Isso não é você. Já estava aqui. Você tem que acomodar de repente uma nova versão sua que também vai ter que virar você. Olha que merda. Olha que dis-pa-ra-te.

Mas na maior parte do tempo ele falava com extremo domínio, extrema naturalidade, como um âncora ou político sedutor. Murilo não sabia se deveria falar algo entre as palavras, queria avisar que não estava conseguindo anotar todas as palavras, mas estava com medo de quebrar aquele transe (que parecia muito importante, ainda que ele não entendesse de que forma que aquilo podia ser importante, para quem, quando), de estragar tudo.

— Tudo parece quebrado, pouco. E do nada vão se apresentando os gancho. Os encaixe. Ah, Constança, constâncios. Coxíssimas e pistões.

Tasso parecia tentar pegar alguma coisa, puxar pra si uma gaveta, todos os gestos muito lentos e estudados, e ainda assim, de alguma forma, parecendo involuntários, como se os movimentos viessem antes de sua ciência, fossem inteligidos só depois de executados. Uma defasagem severa se impondo.

— Aparece uma mulher, vocês dão certo e casam. A maioria das gentes vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia, montada pelos outros, com figuras que ninguém inventa, moedas de corrência nenhuma que quando você vai ver tão apagadas dos dois lados. Sua alma é uma orquestra oculta, não sabe que instrumentos e peças tangem e rangem, corda e harpas, guitarradas, atabaques timbrados dentro d’ocê. Uailapique ao ualapoque. A gente só se conhece como sinfonia, essa perspectiva insistente que quase nunca vai embora, exceto no sono e na bebida, o pouco espaço finito de todo instante diante da modalidade inelutável e arregaçada do visível. E seus espectros.

Esse final da frase ele falou como um âncora de jornal, golpeando cada sílaba com as mãos, gravemente. Agora sorria de novo.

— Pedras que te dão pra mastigar. Queridinho. Queridinha. Queridinho. Eu sei que tá acontecendo e não tenho como fazer nada, vejo tudo derretido e quase indo embora, quase sumindo. Até você. O mundo que a gente monta e os autômatos que te arranjam, o mínimo do máximo. Malandrões içando as calças por detrás dos panos como bujarronas. O Anikito morreu aqui, você sabia? Eu estive lá no dia. Ligaram desesperados, a gente foi, mas não tinha o que fazer. Tavam filmando e ele caiu lá dum prédio que não tava terminado. Tristeza. Na verdade na hora não tavam filmando, acho que ele tava lá à toa. Eu não sei. Você nem sabe quem é Anikito. Parceiro do Grande Otelo, do Oscarito. Uma figura. Muito talentoso. Eu fiquei chateado, como todo mundo, mas era um caminhão de operário morto por dia, quase. Pelo que me falaram. Eu não tava geralmente nessas obras mais pesadas. E ninguém falava nada. Naquela pressa toda, pra eles era como se fosse uma perda aceitável. Senhores polidos de escravos. Quando eram polidos. Prum gesto épico desses, o que são uns operários mortos aqui e ali? E as pirâmides se fizeram foi como? Eu também não falei nada. Como se o filha da puta soubesse meia lauda que fosse sobre as pirâmides. Eu e o Joaquim tínhamos nojo, mas éramos a mesma coisa. Muxoxo, muxoxo. COVARDE. A gente é rebento falso da gente próprio, o tempo todo fantoches com a nossa voz, a gente, a vida quase toda, toda, os cálculos de uma árvore flexuosa fracionando-se em ramos recurvos e rasteiros, decididos lentamente em tropismos lutados, agonia, agonia. Existem ciclos. Isto a gente assevera com certeza, entrega ementas pra turma sem medo de ser feliz. De repente chove, o céu amassado de extensões negras musculosas bolhando em lentos tumultos desmesurados, gostosíssimos. Que delícia, meu amor, ai meu deus. O mundo se acerta nuns troncos bojudos de baobás embarrigando. Pintos e bocetas enormes. Você enumera, coleciona, constrói, abandona os destroços de não sei que grandes jogos, matam o deus numa excursão de novo e nos trazem a sua cabeça, que fica por muito tempo ainda olhando pra gente e sangrando os fundos da casa e fedendo um futum que vai ganhando em riqueza e complexidade.

— Calma. Vai devagar. Vô. Vai devagar.

— Essas gavetas do fundo da nossa cabeça que não alcançamos, barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem. Eu vi uma vez só, um caminhão desses. Não chegava a ser um caminhão, no caso, era uma caminhoneta dessas de gás. Tava com os corpos de um acidente grande, um andaime que caiu com oito na construção da Torre de TV. Eu vi aquilo quando tava de dia, ainda, quando tavam erguendo, falei pro Joaquim que dava pra ver que ia dar merda. Os candangos lá subindo naquela altura numa estrutura toda mambembe. Eu não sei dizer o que é coragem o que é desespero. Ninguém sabe. Coragem é o caralho. Medo é o caralho. Se você grita comigo pra obedecer e eu tremo eu não tou te obedecendo. Eu tou só tremendo. Se você sobe num andaime mal-feito pra comer você é corajoso ou é um refém? Eu ouvi de um homem muito sério que tinha gente concretada no congresso. Um homem sério, que sabia do que tava falando. As in gente humana ali no meio da estrutura, do concreto armado. Massa confusa, obvoluta et intrincata matéria. A gente gosta dela nítida e colorida, piano que toca a si mesmo. Um panteão de Deuses nos quais você não acredita, como adereços de ópera desusados por trás do palco. Putas velhas. As únicas coisas que existem.

— Vai devagar, vô.

— Uma aparição que vem só pra enfraquecer rapidinho e sumir, um espectro fazendo troça da própria realidade que ele tinha assumido de forma tão convincente. É tudo filha da puta até lá embaixo, meu filho, mas toda puta é sua mãe, toda puta é Maria.

Ele agora estava chorando. E cada palavra saía com dificuldade, com uma urgência que deixava Murilo ainda mais agoniado do que ele já estava, de não conseguir nem entender e nem anotar o que ele estava falando.

— A performance já terminou, o teatro, a plateia já saiu fora, os aplausos ainda ecoam na sala vazia. Mas a ideia do espetáculo como algo a ser performado e absorvido ainda hesita no ar muito depois do último espectador ir pra casa dormir. Ela ainda aguenta, Joãozinho.

Tasso parecia procurar formas diferentes de dizer uma mesma coisa. Sua atenção vagava pelo quarto procurando naqueles objetos ali alguma equivalência, alguma sugestão.

— Você primeiro fica lá só vendo as plantinhas. Eles te deixam no máximo molhar as plantinhas só de vez em quando.

Fazia gestos vagos com a mão, torcia os dedos como que precisando um mesmo gesto repetido que ele não conseguia fazer certo.

— Todas as almas rejuntas, repetidas no final do episódio, os créditos passando. Fazem mesura, mandam beijinho, agradecem seus produtores. Os depósitos cheios de mortos. O sentido do passado reconhecido e redimido, enfim. O diabo de costas.

Ele enfim parou de falar. Sua expressão continuava terrível, de um convencimento, uma preocupação extraordinária. Ela foi lentamente cedendo, seus olhos perdendo a expressividade, se distraindo de tudo.

Murilo não pegou dez por certo do que o avô disse, nem isso, fragmentos de frases anotados com pressa, as palavras corridas umas sobre as outras, acotovelando-se num garrancho ilegível.