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Cátia trabalha num call center há mais de dois anos. Ela odeia, mas é estável e menos pior, ela acha, do que ser garçonete, seu trabalho anterior, no qual ela tinha que aturar homem seboso dando em cima dela o dia inteiro. Mas era estranho ficar naquele lugar enorme, o ar-condicionado fraco que deixava mais seco do que frio, por tanto tempo, tanta gente em volta fazendo a exata mesma coisa, uma sobreposição mais ou menos simultânea, adiantada e atrasada, duns mesmos poucos gestos e frases. Depois de dois anos ela mudou de emprego dentro da mesma empresa, que tinha galpões como aquele pelo estado todo. Ela primeiro promovia empréstimo de banco, seguros e serviços funerários (teria pra sempre na ponta da língua a frase introdutória de cada uma, todas querendo invocar ou criar medo em gente velha, ela achava, aqueles que mais se dispunham a ouvir as ofertas, talvez por solidão), agora ela fazia serviço ao consumidor.

A empresa, na verdade, fazia o serviço ao consumidor de várias outras empresas, mas cada pessoa trabalhava sempre com uma mesma, para ter noção do protocolo direito e dar uma impressão mais especializada. Assinalaram para Cátia um site agregador de passagens aéreas de várias companhias.

Antes ela lidava com gente desligando na cara o dia todo, que no começo era desagradável mas depois de um tempo ficou preferível aos outros tantos que preferiam xingá-la profusamente, às vezes de maneira até criativa, por incomodá-los durante o dia (como se ela tivesse fazendo aquilo por prazer, do nada tivesse pensando nossa o Douglas Menezes de Santos deve tar doido pra ouvir umas ofertas de empréstimo consignado).

Agora ela tinha que lidar com doidos com problemas insolúveis e intermináveis. Um dia ficou quarenta minutos com um cara de voz anasalada do interior do Paraná que insistia que o preço que eles tinham anunciado como prestes a expirar em três horas estava disponível de novo no dia seguinte.

— E ainda quando você vai comprar ele tá trinta e dois reais mais caro.

Ele provavelmente estava certo, mas e aí, ele queria que ela fizesse o quê? Admitisse que o site era meio sacana?

Só ficava repetindo “Senhor, o seu testemunho está sendo gravado e vai ser submetido aos canais apropriados, tá, pode ficar tranquilo, sua opinião é muito importante para nós”, como dizia o manual, e como tinha ensinado sua supervisora, Marta, de cara fechada, a voz ali beirando o limite da grosseria, o tipo fixo de quem suspeitava de todo mundo.

Às vezes, do nada, Cátia lembrava dos três filmes de putaria que tinha feito assim que completou dezoito anos. Geralmente acontecia quando ela estava se olhando no espelho ou tentando tirar foto de si mesma. Vinha um ligeiro tremelique na espinha. Ela não se arrependia, exatamente, mas também não gostava de lembrar. Com a grana pagou os primeiros seis meses de aluguel num apartamento em Jardim Ângela, tirou a si própria e ao irmão do quarto onde moravam de favor há anos. A primeira filmagem não foi tão desagradável, pra sua surpresa. Seu cabelo estava pintado de um vermelho sujo, o ano era 2004. Mas as duas seguintes foram péssimas. Nunca contou para nenhum namorado, só para algumas poucas amigas. Quando fez achou que pouca gente assistiria aquilo, uns DVDs lançados por uma produtora tão fuleira, ainda que gringa, e que no Brasil vendia só em posto de estrada e lojas nojentas. Cátia nunca nem viu um DVD com sua participação à venda, só uma capa escrota onde ela aparecia junto com cinco outras garotas, de bíquini. Parecia absurdo imaginar que milhares de americanos haviam batido bronha pra cara dela, mas enquanto soava distante e abtrato isso tinha quase graça. Odiou descobrir um dia, lá pra 2010, por uma amiga que também trabalhou no ramo, que dava pra encontrar vídeos dela nesses sites gratuitos. Quer dizer que algum gringo filha da puta em algum caralho de lugar tava ganhando grana com o corpo dela até hoje. Quer dizer que se um dia ela tivesse um filho ele poderia encontrar facinho. Arrumam um jeito de te explorar depois de já terem te explorado. Como se tivessem explorando agora o espectro dela, forçando a trabalhar de graça. Mas Cátia também imagina o seu pai encontrando aqueles vídeos e acha graça. Chega a desejar que aconteça.

Cátia morou com a mãe e o irmão até fazer quinze anos. Os três tavam há um tempo num apartamento de dois quartos em Jabaquara quando um dia chegaram os dois da escola e a mãe tinha retalhado o sofá, as almofadas e os colchões em busca de um chip que ela dizia que tava xingando ela de vagabunda. O irmão riu, Cátia foi tomada por um pavor gélido que parece que nunca saiu dela direito desde então. Ela já tinha entendido que a mãe tinha alguma coisa torta nas ideias, mas a coisa realmente piorou depois que o pai deles saiu de casa e ela teve que cuidar dos dois sozinha. Cátia com doze, Álvaro com seis. Ela tinha raiva do pai por sair, mas às vezes pensava que se fosse ela teria feito o mesmo. Só que podia ter levado ela junto, pensava, ou o irmão. Pelo menos um dos dois. Ela sempre se achou mais parecida com o pai, que era tranquilo e irônico, só queria ficar deitado vendo televisão e fazendo graça de tudo. Chamava ela de “bonequinha”, o que ela nunca gostou, e fumava meio maço Hollywood ao longo do dia, deitado, de uma maneira mecânica que não denunciava prazer algum. Enquanto morava lá, não trabalhou muito. Depois de uns anos começou a mandar um pouco de dinheiro pelo irmão, Osvaldo, um cara muito tímido que passou a fingir que não era mais família, dava o dinheiro num envelope e vazava falando tão baixo que ninguém escutava. Nem ligar mais o pai ligava desde que a mãe passou a pegar o telefone pra xingá-lo. Chamava ele sempre de “o falecido”.

Ela, Ângela Maria, era uma pessoa ansiosa, angustiada, que não passava um minuto sem falar. Falava desde o minuto que acordava até dormir, a boca ainda formando sílabas soltas enquanto a consciência fraquejava. E só fazia sentido, no máximo, na metade do tempo. Sua verborragia sempre foi muita e muito derramada, volteada em sílabas que saíam fraquinhas por um tempo, como se não pretendessem ser ouvidas, e de repente voltavam fortes no meio de uma frase como se esperasse ser respondida por todo mundo num raio de dez metros. Trabalhou nos correios até ser licenciada por saúde depois de vários desentendimentos com seus colegas e com clientes. Mas não conversava com ninguém sobre isso, jamais aceitou falar sobre saúde mental, terapia, invalidez, qualquer palavra associada a isso parecia que desligava o rosto dela, fazia ela mudar de assunto ou de cômodo. Ainda assim por muito tempo todo mundo em volta de Cátia e de Álvaro, as tias e tios dos dois lados, as professoras da escola, fingiam que a mãe era sã, capaz de cuidar deles direitinho sozinha. Verdade que por um bom tempo ela cuidou, sim, cozinhava e lavava as roupas e fazia tudo com o máximo de competência que tinha e dava pra ver que não era nada fácil. Aquilo já seria trabalhoso para alguém que não estivesse se desagregando violentamente todo dia, todo dia se protegendo de alguma destruição nova. E Cátia tava sempre lá pra desligar o fogão quando ela deixava aceso, fechar a porta da frente que ela deixava escancarada, ajudar a ela a terminar uma ligação que, se deixasse, ela arrastaria eternamente (com quem quer que fosse, mesmo gente que ela odiava, mesmo o cara da cia do gás).

Quando ela e o irmão foram morar com a tia Vanusa, a vida ficou menos tensa pra algumas coisas, mas não ficou mais confortável. Dividiam o quarto abafado de empregada e sentiam o tempo todo que tavam ali de favor, que a casa não era deles, que não podiam reagir direito as provocações dos primos, que eles não deviam comer demais da comida e que eles tinham que se fazer úteis para merecer qualquer coisa. E ainda assim foi um alívio. Nos primeiros meses visitar a mãe era agradável, ver ela mais calma, ainda que grogue e ainda que num lugar meio deprimente. Mas depois que ela tentou cortar a própria perna, dizendo que esta não era sua (e cortou tão fundo com uma faca de carne na cozinha que precisaram amputar, depois de uma infecção), as coisas começaram a piorar numa progressão que ainda deixava Cátia sem fôlego três anos depois, sempre que a recapitulava. Dez meses depois foi a outra perna, no jardim da instituição onde ela tava, com uma pá. Ela parecia ter se apaixonado por jardinagem e tava trabalhando na horta por três meses até a deixarem sozinha dois minutos com alguma ferramenta. Encontraram-na deitada no chão mordendo um pano pra não gritar muito, já quase desmaiando do tanto de sangue que tinha escoado. Tampouco conseguiram salvar essa perna. Mudaram ela de lugar, foi pra uma instituição mais rígida e mais deprimente. Ângela agora ficava deitada vendo TV o tempo todo, uma expressão desligada no rosto. E ainda assim já tinha mais de uma vez cochichado com outros internos que a sua mão esquerda tava com os dias contados. Que aqueles membros eram impostores e estavam tentando tomar o corpo dela.

Nas poucas vezes que Álvaro perguntou se doidura passava em família, Cátia disse que não, pra ele parar de ser burro, mas na verdade ela não sabia dizer. Se passasse os dois tavam fodidos. Ela ouviu na TV uma vez que maconha podia causar esquizofrenia. Ouviu isso meses depois de experimentar pela primeira vez, com o primeiro namorado, Lucas. E sempre que algum pensamento mais esquisito ganhava corpo ela já dava aquilo por anúncio. Taí, ó. Tá chegando, já já chega. O derretimento. Ela não sabia se queria que chegasse logo ou se demorasse. Talvez o pior momento fosse o intervalo, o começo, onde as coisas começassem a tremer nas bordas. Talvez depois ela pudesse encadear uma doidura que não doesse tanto quanto a realidade. Mas isso ela já sabia que era uma esperança idiota. Cátia encontrou a mãe algumas poucas vezes em êxtase, uma vez ouvindo um disco do Paulinho da Viola pelada na frente do ventilador negaceando, achando que estava sozinha (e Cátia não contrariou a impressão, quieta no canto), outra vez tomando banho e fumando um cigarro de um maço que um tio esqueceu na casa deles, conversando consigo mesma em duas vozes, uma delas rouca e masculina. Quando Cátia lembrava disso ela pensava nas viagens boas que tinha às vezes fumada, vendo desenho animado ou ouvindo música com o Lucas, pensava que ela ia endoidar pra cima, não pra baixo. Mas, no geral, ela sabia, para a mãe o mundo tendia a ser um lugar ainda mais violento, ainda mais confuso, ainda mais estranho, ainda mais horroroso, do que ele já era de fato.

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