50.

       Murilo desde muito novo tinha a recorrente impressão de que não era filho de seus pais. Ele não chegava a imaginar uma outra genealogia mais específica, apenas imaginava algo diverso daquilo ali, imaginava que tinha que haver alguma outra origem que não aquelas duas figuras tão distantes dele, tão duras, inarticuláveis, com quem ele praticamente não tinha comunicação. Ele de fato até se parecia um pouco com a mãe, principalmente na sobrancelha e na juntura ali do nariz e dos olhos. Mas com o pai ele não conseguia verificar nenhuma semelhança que não pudesse ser só coincidência, nada definitivo.

       Por volta dos oito anos sua imaginação tendia repetidas vezes para cenas onde ele reconhecido na rua por seus familiares de verdade e levado imediatamente para uma outra casa qualquer (numa cena muito agradável, de muito júbilo, inclusive com seus pais antigos e falsos contentes com a resolução, fazendo sua mala com ele, todo mundo rindo). Ele nunca conseguia imaginar essa outra casa, sua imaginação sempre se interrompia no trajeto, tentando se demorar na antecipação extraordinária de um lugar ao qual ele realmente pertencesse. Ele agora traçava uma linha espessa e inequívoca entre a figura dele mesmo e a figura do seu avô. Não era importante elucidar essa ligação, dar a ela uma feição genética. O importante é que ela existia. Ele não mais pensava na sua presença no mundo como um troço desconectado de todo seu ambiente e de tudo e todos que ele conhecia.

       Murilo sabia que o avô estava morrendo, que devia ser uma questão de meses (talvez até semanas). Ele pensava em tentar dizer alguma coisa bonita pro avô para que eles tivessem uma cena como aquelas de filme, ficava formulando frases na sua cabeça sem nunca decidir por nenhuma. Passou a aparecer lá uma vez por semana.

— Túlio.

Murilo demorou para entender que o avô estava se referindo a ele, apesar dos olhos diretamente voltados para os seus.

— Eu sou o Murilo, vô.

— Eu sei, eu sei. Eu não tou gagá ainda não. Eu só confundi. Confundir todo mundo confunde. É como um trocadilho, não é confusão-confusão. Quando você chega na minha idade, as pessoas às vezes se bagunçam, começam a parecer anagramas umas das outras. Elas envelhecem e de repente ganham a cara de gente morta ou de crianças envelhecidas tem tanto tempo que puta que pariu. A minha filha, por exemplo, a sua mãe, ela é a minha mãe com meu irmão Túlio. Eu percebi isso quando ela tinha doze anos e desde então ela me vem sendo exatamente o Túlio cuspido e escarrado, perfeito. A mesma indolezinha revoltada, a mesma cabeça de merda. A mãe da Magda de repente aparece nela inteira. O meu pai nasceu em mim alguns anos atrás, quando fui notar ele já estava entranhado aqui.

Tasso aperta com força um pedaço do braço direito.

— E você é feito dela e de mim. Mais nada.

       Murilo sorriu um pouco constrangido com essa frase, sem saber exatamente como deveria reagir.

— Eu falo isso, um pouco, para te avisar. Eu sei que não deveria falar assim com uma criança, você é uma criança. Eu sei que você é uma criança. Não estou louco ainda, Edílson. Mas também não existe esse negócio, você é uma pessoa pequena, só. Mas eu acho que tenho que te avisar. Você sou eu, entende? Então você deve se preparar. Porque não vai ser fácil. Não é fácil ser a gente, ser assim.

       Murilo continuou calado, agora não mais sorrindo, olhando para baixo.

— Você sabe do que eu estou falando, não sabe? Eu não preciso te explicar. Você não é burro como todo mundo. Mesmo sendo filho do teu pai.

       Ele estava sorrindo depois dessa. Murilo não respondeu, mas sua cabeça tremeu de um jeito que poderia ser compreendido como um assentimento.

— Presta atenção. Que você vai querer representar o mundo, vai querer abocanhá-lo todo de uma vez, vai se excitar todo com vários livros e artistas e ideias, com essas figuras todas. Mas nada disso vai servir. Você vai tentar criar o seu mundo interior, então, o seu próprio sistema, suas próprias figuras. Mas elas também não vão vingar. Nós temos uma das piores disposições do mundo, que é de um artista sem gênio. Um artista sem gênio é a coisa mais lamentável. Nossa imaginação é infértil, é seca, é de barro ralo e mais porra nenhuma. Nós conseguimos ver os gigantes todos, as crateras, mas a gente não consegue inventar porra nenhuma.

       Ele pegou o pulso de Murilo de uma vez, suas mãos frágeis mal conseguindo apertá-lo, a pele de uma textura áspera e quebradiça com pelos brancos quase invisíveis brotando dos cantos mais inesperados. Murilo continuava de cabeça baixa, sem ver que os olhos aquosos do seu avô estavam mais expressivos do que nunca.

— Você nunca vai criar nada. Vai se acostumando com isso. Eu sei disso porque você sou eu, eu consigo ver. Os seus olhos, o jeito que o mundo te derruba. Eu te digo isso pra te avisar. Você nunca vai criar nada.

       O pulso dele ainda estava seguro pelo braço frágil e fraco do avô, cujas poucas carnes balançavam com todo movimento, desprendidas do osso denunciado. Balançava muito depois de parar de falar o que soou como uma maldição, seu corpo já quase decomposto, unido apenas minimamente em junturas que quase cediam, prestes a se desconjuntar a qualquer momento.