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Tamires e Simone se conheceram num fórum sobre anime em 2007 (num tópico sobre Ghost in the Shell), a primeira com dezesseis, a segunda com quinze anos. Tamires era de Cuiabá, Simone de Belo Horizonte.

Rapidamente começam a conversar todo dia, elas descobrem juntas o feminismo cyberpunk, começam a compartilhar um mundo denso de piadas internas. Simone tinha acabado de terminar com o primeiro namorado quando conheceu Tamires, que nunca tinha namorado ninguém. Simone descreve o desconforto que tinha sentido nas primeiras transas, que ela achava que seriam ótimas e acabaram sendo bem ruins. Tamires disse pra amiga que era lésbica, embora nunca tivesse antes formulado isso desse jeito pra si mesma e nunca tivesse beijado uma garota além de uma prima quando era mais nova, de brincadeira.

Mas diante da amiga virtual ela gostava de se sentir confiante, então falou que já tinha transado com duas garotas sertanejas bem machonas que tinham dado em cima dela num bar, o que não era verdade nem de longe. Isso levou Simone a prontamente dar uns amassos na irmã mais velha de uma amiga sua e vir contar com orgulho no dia seguinte. Algumas semanas depois já tinha transado com uma amiga da escola e falou que achava que não ia voltar a mexer com pau nunca mais. Ou não tão cedo, pelo menos. Heloísa ficou impressionada, mas não conseguiu fazer o mesmo, não conhecendo tanta gente pessoalmente e não tendo muito hábito de sair. Confessar sua atração por alguma das meninas de sua sala parecia absolutamente impossível. Teve mais de um pesadelo onde isso acontecia e uma polícia de uniforme rosa aparecia para prendê-la.

Ela ajudava o pai na mercearia e a mãe com a casa o tempo quase todo em que não estava na escola. O único bar perto da casa dela não era exatamente uma referência regional LGBT.

Depois de um ano de amizade, Tamires só tinha enviado uma foto dela para Simone, uma dela mais nova, bem menos gorda do que ela acabou virando com o tempo. Simone tinha várias fotos dela disponíveis pela internet e estava linda em todas, parecendo ainda menor e mais frágil do que era, cabelo liso escorrido castanho e traços delicados, um pescoço enorme. Simone dizia que ela também era linda, mas ela sabia que devia ser gentileza (ou afeição). Tamires era baixa e achava o seu corpo feio mesmo quando não estava obeso (e ele geralmente estava). Seu cabelo crespo ela deixava o mais curto possível mais para não ter trabalho nenhum do que por uma escolha estética, seus óculos grossos deixavam os olhos pequetitinhos se perderem na imensidão do seu rosto.

Simone convidava a amiga para ficar na casa dela em BH, praticamente desde que se conheceram, mas foi só com dezenove anos que Tamires juntou o dinheiro pra passagem de ônibus e aceitou o convite. O que motivou a decisão foi o fato de Simone estar doente. A leucemia que ela tinha tido na infãncia tinha começado a voltar. Ainda não tava sentindo com tanta força, mas já tava debilitada. Tamires ficou no quarto da amiga, na casa dos pais dela, no bairro de Lourdes. Ela nunca tinha estado numa casa tão rica e ficou envergonhada de suas roupas, de sua mochila e de tudo mais que envolvia sua aparência. Os pais dela tentaram ser educados, mas dava pra ver o choque estampado no rosto deles diante de tudo que ela mostrava. Perguntaram quatro vezes, em dois dias, como elas tinham se conhecido. Ela tentou impressioná-los com algumas referências históricas sobre cultura japonesa, no jantar que fizeram os quatro num lugar de sushi (ela mentindo que já tinha comido aquilo antes, fazendo o possível pra esconder sua surpresa com o gosto e a textura). O pai pareceu amaciado, a mãe não.

Na segunda noite que elas dormiram no mesmo quarto, Simone se esgueirou pro colchão da Tamires, no chão do lado da cama dela. Sem falar nada, ela começou a beijar a amiga, primeiro na orelha, depois na bochecha, depois no pescoço. Antes dela chegar na boca Tamires já estava explodindo de alegria, sem saber o que fazer, sem saber se podia reagir, se aquilo era brincadeira ou era a sério, com medo de um gesto errado estragar tudo. Quando a mão de Simone entrou dentro da sua calcinha ela teve que unhar sua própria perna pra não gritar de prazer (com os pais no quarto ao lado). Quando ela mexia em si mesma já tinha aquele formigamento todo, aquela força arvorando pra dentro como que repuxando suas entranhas de partes que você nem lembra ou nem sabe que têm, mas com ela fazendo era toda uma outra coisa, outro departamento inteiramente, dava para se entregar a um movimento que você não tinha como prever nem controlar, que mexia você por conta própria, no seu próprio ritmo, e que ela engolia na mesma medida em que engolida era. Tamires percebeu que Simone tava olhando, mas não conseguia olhar diretamente de volta, esgueirava e depois olhava para baixo, para a boca, tinha medo de ultrapassar o patamar de intensidade quase insuportável no qual ela já tava e que não parecia poder comportar ainda outra fase. Como que podia tanto?

Ela dormiu o melhor sono da sua vida, depois, acordou no dia seguinte sem acreditar que ela de fato estava ali e que tudo aquilo estava acontecendo daquela maneira. Ela simplesmente continuava arrastando adiante aquele sonho tão bonito e inverossímil. Enquanto tomavam café, a empregada servindo tudo em silêncio, perguntando se ela queria café, cappucino ou macchiato, Tamires muito desconfortável com a situação, rindo de nervoso. Ela se perguntava se aquilo da noite anterior ia continuar ou tinha sido só um capricho de alguém para quem aquelas coisas iam e vinham com muito mais facilidade.

Mas assim que as duas saíram de casa para passear, Simone tomou a mão dela na sua e deu um beijinho no seu pescoço. Ela não podia passear tanto porque estava fraca do tratamento (e da noite anterior), mas as duas foram pra umas praças lá perto, Tamires conheceu uns sebos que Simone amava. De noite, logo depois de darem boa noite pros pais e fecharem a porta, Simone descia pra cama dela e cada vez a coisa ficava mais intensa e prolongada, mais difícil de conter. Ainda assim, Simone nunca tirava sua roupa toda, sempre continuava de camisa, pelo menos. Tamires demorou para entender que o motivo eram as manchas que ela tinha na pele das infecções, além da nóia mais generalizada que a doença tinha trazido pra imagem que ela tinha do próprio corpo. Mas isso ela ainda ia demorar um tempo para dimensionar.

Tiveram assim seis dias maravilhosos, de longe os melhores da vida de Tamires até então. Simone tentava convencê-la a vir morar em BH, ela respondia com as coisas óbvias, ela não teria onde morar, o que fazer. Simone insistia que ela tinha que tentar a carreira de ilustradora ou tatuadora, dizendo que ela tinha muito, muito talento. Ela gostava de ouvir isso, mas sabia que as coisas não eram fáceis assim. Não pra ela. As duas quase não conversavam da gravidade da doença, em parte porque Tamires não conseguia levar aquilo a sério. Alguém tão bonita, tão jovem, tão rica. Claro que nada de ruim ia acontecer com ela. Óbvio que não. Ela só foi descobrir depois, voltando pra Cuiabá, quando Simone foi internada, que a coisa era muito mais séria do que ela imaginava.

No último dia antes dela ir embora, talvez porque a antecipação da saudade tivesse deixado elas com mais tesão, acabaram fazendo muito barulho no quarto. A mãe começou a bater na porta com muita força, uma hora, perguntando se tava tudo bem. Ela devia saber perfeitamente que tava tudo maravilhoso, mas era a maneira dela de indicar que aquela putaria tinha que parar, que daquele jeito não dava. Simone atendeu a porta com nenhuma paciência, disse que tava tudo bem e bateu e trancou a porta em seguida. Tamires disse que era melhor elas ficarem quietas, mas Simone insistiu que não, que ela não sabia quando ia poder vê-la de novo na vida e que queria ver ela gozar de novo ainda naquela noite. Uns cinco minutos depois a porta foi aberta abruptamente (a mãe devia ter uma chave só dela) e as três se entreolharam por uns dois segundos até a mãe começar a gritar.

– VAGABUNDA, SAI DE CIMA DA MINHA FILHA. SUA IMUNDA.

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