46.

Terminada a semana, os pais chegam de viagem no domingo à noite e levam Murilo de volta pra casa. Trazem para ele de presente um boneco do Baby (da família dinossauro) e um boné do pato Donald, que ele acha incrível e fica usando no banheiro por horas. Olhando no espelho e falando consigo mesmo, sem fazer barulho, só mexendo os lábios com deliberação e modulando expressões.

Quatro anos depois, Murilo está sentado no pequeno jardim da casa e olhando para o gato que sua mãe adotou da rua e que ele sabe que vai ser expulso pelo pai em breve. A mãe explicava que ele era alérgico, mas  Murilo entendia, sem dizer nada, que a rejeição do corpo do pai ao gato devia querer dizer alguma coisa a respeito da alma do pai. Murilo do nada se lembra da cara do avô balbuciando aquelas coisas que ele tentava fazer em palavras, mas não conseguia. Ele agora tinha onze anos e já tinha lido mais de trinta livros sem desenho, quase todos os que pode encontrar nas estantes da sua casa, à exceção de dois manuais de direito administrativo e de partes da Bíblia. Ele adorava o Êxodo em particular, as aventuras de escravos se libertando, mas nunca gostou dos salmos e achava os profetas repetitivos. Na Enciclopédia Britânica ele ainda estava na letra J.

Murilo deliberadamente não queria se afeiçoar ao gato, embora ele fosse bastante lindo, porque achava gatos criaturas traiçoeiras e falsas, ao contrário de cachorros (que eram ao mesmo tempo ótimos e assustadores), mas era um filhote pequeno e preto, muito magro, suas espáduas se projetando como asas quando ele se curvava, uma fragilidade arqueada e quebradiça que se repuxava e doía em Murilo mesmo achando a criatura perversa. Ele queria proteger aquele gatinho e não se lembrava de jamais querer proteger alguma coisa além do seu Bulbassauro, que vivia dentro do seu Gameboy, e só quando estava ligado. Ele percebe que tem algo numa miniatura bem-feita que consegue demandar cuidado da gente. Olha no espelho, uma voz estrangeira à sua diz, dublada, que foi muito esperto isso que ele acabou de pensar.

       O gatinho chega perto de Murilo e se desmonta de forma muito precisa em volta de seus pés. Ele sente cócegas, tenta não se mexer, mas não consegue. O gatinho se levanta por um instante e olha de novo pro pé, como se tentasse entendê-lo novamente. E por alguma razão o gatinho o faz lembrar do avô. Ele não entende como que isso acontece e isso o perturba. Ele gosta de achar que entende o seu próprio encanamento, a maneira de tudo fazer sentido e se juntar. E ele não entende o que no gatinho o fez lembrar do avô. São duas coisas muito diferentes.

       Murilo está deitado no sofá. Já ligou a televisão e viu que todas as coisas que estão passando são distintamente ofensivas ou chatas. Seis e meia da tarde tem Dragon Ball Z na casa do vizinho, mas ele teria que tocar a campainha, teve aquela vez em que ninguém atendeu e a mãe dele ligou para a sua, o que foi péssimo.

       Talvez aqueles excessos de pelo branco irrompendo de extremidades. E as junturas frágeis se denunciando. Do gato e do avô. Ele fechou os olhos e tentou tomar nota disso, de ter percebido isso e de ter percebido daquele jeito.

       Na quinta feira seguinte, Murilo e o pai vão almoçar pizza Dom Bosco, o único gosto que eles ainda compartilham. Cada um come duas pizzas duplas e toma um mate. O pai retorna ao trabalho de carro. Murilo, ao invés de caminhar sozinho para casa como havia aprendido recentemente, vai até à casa do avô, bem ali do lado.

       A avó parece assustada com a sua presença, mas deixa ele entrar sem muito alarde enquanto fala no telefone com uma prima que Murilo sabe que sempre a alegra muito quando liga, fazendo-a gargalhar de histórias que envolvem sempre uma amiga em comum chamada Elaine, que era muito doida e cheia dos namorados.

  O avô tava dormindo quando ele chegou. Murilo ficou vendo Vale a Pena Ver de Novo baixinho e ouvindo a conversa da avó por uns quinze minutos, as interjeições incrédulas dels diante de coisas que Murilo não conseguia escutar às vezes batiam com as declarações dramáticas de Suzana Vieira na tela. O que era divertido. Isto se arrastou até soar um sininho lá de dentro e os dois irem levar leite pra ele.

       O avô tomava quantidades ridículas de leite. Tava escuro no quarto, mas não o bastante pra justificar o tanto que Murilo não reconheceu aquela figura mal redimida ali. Um estranho, ainda mais magro, suas carnes poucas pendendo soltas dos ossos, com pelos brancos protrusos de cantos inesperados, do meio do rosto, das orelhas, entufados perto do pescoço. A pele que já tava enrilhada, amassada, agora parecia com uma cor diferente, não mais pálida, opaca e espessa como a de um rinoceronte.

       Quando foi pegar água na cozinha conseguiu escutar a avó, que falava alto e pareceu não notá-lo.

— Ele nunca foi agressivo, não dá pra dizer que ele é um homem agressivo, né? Mas agora ele tá, tá irracional, sabe? Né, com umas irritações.

—…

— Ah, isso é besteira, é. Ele fica falando de um manuscrito.

— …

— Um manuscrito, um Júlio, mas não tem nada de Júlio, não tem nada disso não.

       Pelo que sua vó dizia, ele tinha “um negócio no pulmão”, mas se recusava a operar. Murilo não entendia exatamente qual nível de irresponsabilidade médica da situação, se alguma coisa ainda podia ser feita, mas não conseguia forçar a si mesmo a conversar com a mãe.

       Tasso fica sentado na cama sentindo muita dor, gemendo muito baixinho, alguns livros esparramados em volta que ele aparentemente só consegue folhear, sua atenção vagando pela parede. Ele pede com muita insistência que sua esposa colocasse às cinco e meia todo dia um mamão na janela, para que os passarinhos comessem. Ela faz isso, mas passarinho nenhum aparece.

       Um ano depois, poucos meses após aprender como fazê-lo, Murilo gravou um CD-R com vários poetas modernos de língua inglesa lendo da sua própria obra e levou junto com o seu Discman prateado e todo riscado, que estava tornando suas manhãs na escola tão menos intoleráveis. Eliot, Pound, Moore, Williams, Stevens. Nomes que ele tinha lido primeiro ali. Eu vou te mostrar medo num punhado de pó.

Tasso fechou a cara quando viu o aparelhinho, mas depois de alguma insistência aceitou os fones de ouvido e mudou a expressão quando começou a reconhecer aqueles versos. Por mais ou menos vinte minutos ele ficou sorrindo, extasiado, mas de repente sua expressão se fechou, arrancou com violência os fones da cabeça e jogou aos pés da cama, falando que aquilo era tudo mentira, aquelas vozes não existiam, eram impostoras.

— Wallace Stevens nunca leria sua própria poesia tão mal assim. Esse impostor além de impostor é péssimo, péssimo.

Tasso parecia profundamente perturbado, os olhos grandes. Murilo recolheu o seu Discman e achou melhor não insistir.