45.

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Assim que os pratos chegaram, Cristiano pediu licença para ir ao banheiro. Como estava no canto da mesa, seu pai, a esposa novinha dele e um de seus irmãos mais velhos tiveram que levantar para ele passar. Reclamaram da sua saída ao banheiro assim que a comida chegava, Cristiano pediu desculpas rindo, como sempre fazia. A família era toda de Cuiabá, mas os filhos viviam em São Paulo tinha mais de uma década, e o patriarca também trabalhava lá durante mais da metade do seu tempo. Somando a família toda, laranjas inclusas, eram donos de mais de seis milhões de hectares em três unidades da federação, pelo menos quinhentas mil cabeças de gado e cem mil de porco. A mesa tinha seis pessoas sentadas, duas esposas ainda estavam por chegar.

Cristiano trancou a porta do banheiro assim que entrou, encarou o espelho. Seus minúsculos olhos azuis pareciam sumir naquele rosto enorme e rosado. A testa brilhava de suor, duas pizzas cresciam debaixo dos braços da camisa morstarda.

— Você não tá tendo uma crise. Cristiano. Cristiano. Isso não é uma crise.

Ele sempre se sentia idiota quando falava sozinho, mas já tinha ajudado antes. A única coisa que havia prestado dos meses com aquela bosta daquela terapeuta carésima e arrogante. Dessa vez não vinham à mente as imagens de sempre (dele mesmo pelado, gordo, com gente rindo em volta, dele criança no meio de adultos do tamanho de arranha-céus). Há três semanas, desde que voltou pra casa, Cristiano o tempo todo lembrava do maluco sem perna pulando, rebolando, curvando e mostrando o cu bem aberto pra ele, piscando.

— Isso aqui é um portal, meu querido. Um portal prum mundo maravilhoso.

Cristiano lembrava dele próprio rastejando no meio dum bando de porco, as pernas amarradas uma na outra. Os porcos rosados e gordos que nem ele, fazendo aqueles barulhos focinhados, borborismos amassados que ele ouvia agora saindo de qualquer tubo, qualquer canto, dormindo ou acordado.

No raio-x não encontraram nada na nuca dele, apesar da sua insistência de que tinham botado algo nela, a memória de sentir uma picada por ali durante uma noite grogue, com o aleijado e a gorda segurando o seu pescoço e discutindo entre si. Ele sabe que quando ele fala isso pros outros ele soa maluco. Depois do último depoimento que deu para a polícia federal o cara fortinho de aparelho olhando pra ele com cara de pena, Cristiano desistiu. Só conversa com a esposa, quando bebe, chorando até amanhecer. O pior momento foi a piscina. Ele não sabe do que é que tinham enchido aquilo ali, mas enquanto viver vai lembrar da consistência. Aquela gosma rosa espessa, o cheiro de amônia e de morte e o corpo todo entranhado daquilo por dias. Dava engulho só de lembrar. Era impossível pra ele comer carne sem sentir aquilo de novo, a pele toda empestada. Ainda mais carne de porco, que sempre foi a favorita dele. Ele quase só comia peixe desde aquele dia. E quando tentou explicar pros irmãos todos só foram fazendo uma cara de confusos e irritados até ele desistir. Ninguém gostava nem que ele lembrasse do assunto, preferiam que fingisse que nada tinha acontecido. Às vezes Cristiano suspeitava que eles nem acreditassem nele, não inteiramente. Pareciam achar que ele tinha endoidado, inventado aquilo tudo. Trocavam olhares entre si sempre que ele tentava falar sobre aquilo. Endoidar ele pode ter endoidado, mas foi depois. Aquilo tudo aconteceu mesmo, Cristiano sabia. Não tinha como não saber. Os porcos correndo junto com ele, a gorda de máscara lendo aquelas coisas horríveis por horas, as descrições de animais que passam a vida confinados, empilhados com outros, comendo os restos mortais dos seus pais e avós, ouvindo o grito deles de dor, o cara sem perna tirando os negócios do cu. Como que ele ia conseguir inventar aquilo tudo? Donde que ele tiraria essas desgraças?

Ainda no banheiro, Cristiano imagina a mesa, seu pai com a mulher gostosa dele e os irmãos com as deles, até a Regina atarantada e tensa por sua causa, todo mundo lá feliz da vida metendo seus garfos e facas nas coxas e pernas e braços e peitos de bichos mortos em cima do prato. Ele sugeriu japonês, o pai e os irmãos emendaram o nome de três churrascarias, escolheram a de sempre. Ele ensaiou pedir um frango, o pai olhou pra ele com uma cara irônica. A cara que ele mais teme no mundo. Pediu costelinha de porco para dividir. Agora tem que comer. Não tem jeito. Olhou de novo sua figura no espelho, o rosado indo pro vermelho, seu cabelo castanho encaracolado, os olhos azuis opacos, a cara assustada. Lavou o rosto, falou de novo pro espelho que não tava tendo uma crise de ansiedade e voltou para a mesa com um sorriso enorme, fazendo todo mundo levantar de novo para ele voltar para o seu canto. Foi só sentar e espetar o canto de uma costela com o garfo que lhe veio uma inundação, o vômito de vermelho vívido de beterraba jorrando numa rajada que atingiu três pratos, dois celulares e uma echarpe de caxemira antes que se voltasse para o chão.

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