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       Depois de aguns dias, o avô começou a falar com mais frequência, confessar coisas inesperadas num tom que Murilo não conseguia ter certeza se eram direcionadas para si mesmo, para ele ou para alguma terceira entidade não nomeada.

       Disse da vez que tinha sido levado com dezessete anos a um puteiro no interior de Goiás com os irmãos mais novos, quando descobriram que ele ainda era virgem. Contou do seu constrangimento e de uma senhora bem mais velha, “gorda como uma porca” e muito gentil, que tinha visto o tanto que ele estava apavorado e concordou em masturbá-lo e ficar por isso mesmo. Murilo não compreendeu o eufemismo usado pelo avô, mas entendeu que estava falando de sexo, o que ele nunca tinha visto um adulto fazer fora da televisão.

       Tasso disse também da vez que havia ajudado um senhor cujo nome Murilo não entendeu com a sua tradução de algum autor cujo nome tampouco Murilo entendeu e que o filho da puta não o teria creditado devidamente. Que sem ele a tradução teria ficado uma bosta. Falou disso por mais de uma hora seguida.

Depois disso finalmente se calou por um bom tempo, remexendo o excesso cinzento e machucado de pele seca e esbranquiçada no cotovelo esquerdo com a mão, parecendo com os olhos lembrar de muita coisa e tentar decidir se falava ou não. Até ficar sério, meio espantado, semiboquiaberto, como quem acabou de ter uma puta duma sacação.

— Você vai tomar nota, menino. Da história.

— Que história?

— A minha psicomaquia. As minhas, na verdade. Os gilgameshs aqui, filho. Eita.

— O quê?

— Eu estou tentando chegar o quanto antes na lectura dadueundécima, o eito repartido, o boi arrependido, sim. Antes que termine.

— Oi?

— Lá vem. Começou. Foi. Eita ferro.

— Oi?

— Lectura undecima, dois pontos.

— O quê?

— A transmutação em curso, o senso de si dividido e o processo de sua unificação e consequente dissolução. Fez que não ia, fez que não ia e foi. E fumo.

— …

— Entendeu?

— Oi? Eu não –

— ENTENDEU? TOMA NOTA, MENINO. TOMA NOTA.

Ele estava possesso, de repente. A boca enfezada pra baixo de um jeito esquisito, azedo, os olhos acendidos, tudo de repente reteso como se de uma necessidade premente. Murilo pegou um bloco e ficou a postos, olhando para o avô com uma cara que ele esperava que estivesse transmitindo incredulidade. Mas aí ele não disse nada, continuou com a expressão atenta por alguns segundos e logo tinha o rosto solto como se jamais tivesse dito coisa nenhuma.