43.

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Fabiana sai do quarto escuro chamando por Flávio. Ninguém responde. Desce as escadas com pressa, a mão direita firme no corrimão. Quando chega na sala invadida de luz demora uns segundos pra perceber que não era, como tanto lhe pareceu de imediato, um acúmulo de pequenos brontossauros ali na sua frente, lá fora, vistos pela fresta de janela entre o sofá e a persiana. 

O que era eram os rabos todos empinados dos muitos (quinze? vinte?) gatos, que estavam até o momento quase quietos, mas que, com a sua presença, começaram a se alarmar num massa volumosa de uivos (estridentes e agoniados, uns, afiados e arredios, outros).

Onde que ela tava? Os seus peitos doíam um pouco, ela reconhecia a calcinha e as meias que estava usando, mas não a camiseta do Patolino com o que talvez fosse sangue espirrado, já marrom e seco, num canto. Eita. Ela olha por dentro da camiseta e vê que seus peitos têm uma marca vermelha de mão. Sua espinha enrijece. Nem no quarto e nem na sala encontrou algo pra vestir as pernas, os armários vazios como os de um hotel. Do seu celular e da sua carteira tampouco havia qualquer rastro. O que ela encontrou foi um aparelho estranho jogado perto da cama (meio mal-acabado, com placas expostas, fiação meio tosca) com uma estrutura metálica redonda que parecia feita para acoplar no pescoço.

Quem que ela conhecia que teria tanto gato no jardim? Que merda de casa chique era aquela?

Se tavam todos lá fora talvez não fossem da casa, fossem da rua. Talvez a pessoa só alimentasse. Ela se sentia ao mesmo tempo desperta e alerta pela situação e estranhando muito as impressões que tava tendo, como se o mundo demorasse ou derretesse de uma indecisão que ela associou de imediato com ressaca de doce e de bala. Mas uma coisa era tomar um negócio e esperar o efeito, outra era acordar assim. Sem lembrar de ir dormir. E acordar assim numa situação tão confusa, tão escrota. A gastura trincando nos dentes fez ela pensar em pó, mas ela não cheirava tinha quase dois anos já, não devia ser. 

Ela já tinha acordado antes em algumas casas que não conhecia e pras quais não lembrava de ter ido, mas sempre tava com o celular ou acordava com alguém que conhecia ou semi-conhecia. Uma confusão mental se redobrava sobre outra. Ela tenta fixar a última memória clara, lembra-se de esperar Flávio de fora do metrô Vila Mariana, que ficava perto do trabalho dele. Não lembra de ter tomado nada tão assim na noite anterior. Tava com a Cátia, o Flávio e o tal do amigo dela, tavam num bar aleatório meio lanchonete bebendo um litrão que ficava quente rápido. Eles iam fazer alguma coisa importante, mas ela não consegue de jeito nenhum lembrar o que era. A última coisa que ela lembra era da Cátia se despedindo. E o Flávio? Onde que tava o Flávio? Será que ela não tava era pirando? Talvez não tivesse tomado nada. Só bebido. E feito alguma coisa horrível, tão horrível que nem lembra. Ou sofrido. Feito ou sofrido. Tão horrível que nem lembra. 

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