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Eu empacava. Assim, mesmo. Tipo o piripaque do Chaves, praticamente? Segurava um braço no outro e ia meio encurvando assim, olhando pro além, até começar a falar alguma coisa. Alguma coisa assim que já existe, comercial ou canção, e que não tinha nada a ver com a situação. Quando é assim, eu só saio no choque, de uma vez. Desenterro alguma coisa que me salva, alguma muleta (o filho da puta que inventou que chamar algo de muleta é xingamento claramente tinha todas as pernas). Tudo que funcionar funciona. Por exemplo: Romy Schneider com membranas interdactilícas naquele filme. Dácteis? Entre os dedos. Sou eu, aquilo, todinho. Ou o Jorge Aragão falando “nada, nada é meu, nem o pensamento”, tal qual um neoplatônico truzera (o nous não é teu, não, meu bem). Riqueza de timbre, os pontos descontínuos que dão em continuidade, desembocando em pátio amplo. É por movimento. Pronto. Não tem razão que dê conta de si mesma, Cleiton-Emanuel-Canto. Quanto menos do mundo, é tanto giro em falso que parecemo time de pebolim, os joão e joana sem braço. O tempo bifurcado, correndo pros dois lados, enquanto a gente só vê um, lisinha a curva entre eles. Só os ventilador sem pá. A história dando um sentido tardio, atrasado, pro tempo. Da satisfação e do fracasso, perguntas em avanço. Como quem bota calças num defunto. As calças são pra nós, não pra ele. Pra ele é tarde demais para o conceito de “calças” apanhar muita coisa. Avanço. Que elas avançam. Surdo de terceira quebrando, quebrando. 

A primeira vez que rolou isso deu travar feio foi uma bosta, tava dentro duma delegacia, imagina, pela primeira vez na vida. Em São Paulo. Dezenove anos de idade, o cu travado igual um punho. O primeiro depoimento em delegacia é uma performance crucial na vida da pessoa. Me fizeram uma pergunta simples, do tipo nome e naturalidade, e não consegui responder. E não consegui porque não consegui mesmo, não saía nada. Me deram um tapa na nuca e perguntaram de novo. Daí eu desembuchei

Transato transbordamento transbordante transbordo transncendência transcendental transcorrer transcorrido transcrever transcrição transcrito transcritor transcurso transe transecular transeunte transexual

Aquela era a página seiscentos e alguma coisa do Minidicionário Miranda da língua portuguesa. Foi o primeiro livro que eu engoli de verdade, quando tinha dezessete anos e morava no Rio. E isso foi sair mais de dois anos depois, em São Paulo. Cê pode imaginar como ajudou na minha situação.

A maneira que eu vim a meio que explicar pra mim mesmo com os anos é que alguma coisa me desmonta, seja por ser estranho, por ser constrangedor, por ser emocionante, por ser lindo, por ser tesudo, por ser feio, por ser terrível, por ser maligno, por ser maravilhoso, por ser divino, e diante de qualquer coisa que me sature de tanta intensidade que eu não consiga suportar, eu travo e não sei reagir, a abóboda cava pra dentro, não computa, a ação correspondente não brota e, de alguma forma procurando uma solução, minha cabeça me vem com algum sucesso, guardado ali que por algum motivo encaixe, na hora, seja refrão ou manchete e depois que o encaixe vem a coisa é imediata, eu mal percebo, eu só faço. Não sou nem eu falando, exatamente. Saca? É tipo estar possuído. Digo literalmente.

Eu sempre desde moleque gravei assim fácil-fácil comercial que eu ouvia, música que tava tocando no rádio, essas coisas tavam sempre ecoando na minha cabeça. Sempre fui maleável como massinha, tudo se imprime, quase nada fica. Eu capto, registro e re-transmito. Mas foi depois da minha mãe morrer que começou a rolar isso deu estar bem ansioso em público e do nada eu vomitar alguma dessas coisas mil vezes, ou começar a encadear um refrão de música em outro tipo vinheta de rádio, série de comercial atropelado e acelerado, narração de golos fictícios notáveis.

As pessoas tudo olhando em volta, dependendo do contexto explodindo de rir ou só ficando todo mundo muito sem jeito olhando cada um prum canto como se não fossem com eles. Isso acontecia muito quando eu tinha uns quatorze, tipo uma vez por semana, mais ou menos, ou mais, mas aí eu fui tentando dominar. Minha primeira estratégia foi fazer que a coisa que me explodisse fosse Tim Maia, porque a maior parte das pessoas gosta de Tim Maia e não vai ficar tão desagradada quanto se eu começo a gritar um proibidão ou a música-tema de algum anime (algumas em português, outras transliteradas por euzinha mesma). Não funcionou tanto (mas deu num lindo momento uma vez num ônibus eu e mais duas tiazinhas hippie de cinquenta anos cantamos “Universo em Desencanto” a plenos pulmões).

Eu não tenho uma voz bonita, mas não tem problema. Aqui dentro soa ótimo.

Eu sempre quis ser artista. Mas artista eu digo de televisão, né, famoso, eu digo. Porque artista no outro sentido, no sentido olhem-pra-mim-sou-um-gênio-que-experimenta-e-cria-mundos, essas besteira, isso nem passava pela minha cabeça. Artista era gente gostosa que aparecia na televisão. Hoje eu vejo o tanto que essa noia é errada. O que não quer dizer que eu não tava já certo, na época, dum jeito torto. Na pegada, já, eu digo, mais ou menos. Te dar um exemplo idiota. Em 96, no Rio ainda. Eu, moleque de tudo, um dia, doidaço, vi uma propaganda da Nike que me irritou. Eu nem lembro mais te dizer como que ela me irritou, era um negócio meio normal pra essas coisas, uns cara lá forte correndo e sendo potentes com uns negócio deles. Era foto, aliás, numa parada de ônibus perto da Brasil. E tinha aquela frase famosa deles, né, just do it. Nike era uma deusa da vitória, né, tem aquelas estátua famosa e tudo. Bem depois eu descobri. E virou isso aí. Essa escrotidão esparrada, tão embaçada. Eu tava fumado, tava eu, Mateus, Sardinha, Jemerson e Pamela, acho. A única mulher, a única que sabia inglês. E a Pamela traduziu ali na hora e a gente ficou repetindo assim dum jeito idiota, com uma voz idiota, de comercial antigo, ou de rádio, assim, Apenas Faça Isso. Apenas Faça isso. Não tinha sentido nenhum. Era só um estilo, né, uma onda, assim. Eu conseguia entender isso, que nem era pra fazer muito sentido, mas era bem isso que me irritava. Eram que nem aquelas camisa que falava umas palavra em inglês que na época eu ficava suspeito do que significava e que eu fui descobrir tempo depois que não dizia era porra nenhuma. Authentic Baseball power for space. E aí quê que eu fiz? No dia seguinte eu peguei o negócio lá que me pagavam pra ficar segurando no centro COMPRO OURO e fiquei umas horas com o negócio escrito lá um papel em cima NUNCA FAÇA ISSO. Eu quis fazer esse trem, achei bom, vislumbrei de noite e de manhã consegui que um bróder meu que trabalhava em escritório imprimissse pra mim e fiquei lá segurando o negócio no peito com uma cara boa, até, um tempo. O povo olhava um pouco, mas ninguém parecia se ligar muito não, na verdade. São Paulo, né? Mas hoje eu vejo que era arte já aquilo lá, já, mas se tu fosse me dizer isso na época eu ia rir da sua cara, não ia nem entender. Era só gracinha, só. E era. Mas ao mesmo tempo era a coisa mais séria do mundo.

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