40.

Durante o jantar, que envolvia apenas Murilo e Teresa (“seu avô quase nunca janta, só come um mamão que eu ponho na porta dele”), ele percebeu a disposição que a avó tinha de contar histórias. Decidiu se aproveitar disso para preencher as várias lacunas da vida dos dois que lhe incomodavam (ele não gostava de lacunas). A avó parecia gostar da atenção, mas se complicava nas histórias, ia e voltava, rearranjava detalhes toda hora. Só depois de ouvir várias versões de cada informação é que Murilo conseguia achar que podia depurar dali um meio termo mais ou menos confiável.

       Murilo montava como podia uma imagem que fizesse sentido a partir dos retalhos que a avó lhe dava. Tasso provinha de uma família dura de fazendeiros mineiros de doze filhos, dos quais o pai escolheu os mais velhos para estudar. Tasso (o primogênito) pra engenheiro e o segundo mais velho, Roberto, pra médico. Os outros todos trabalhavam na fazenda da família. Os irmãos pareciam ter um ressentimento vago e raramente articulado de Tasso, da figura meio canhestra que ele fazia, liberado de trabalho braçal e da maior parte dos hábitos e tratos dos irmãos. Tasso acordava na mesma hora dos outros, embora não tivesse que ir trabalhar. Ficava sentado na varanda da casa com a mãe e o irmão mais novo, constrangido. A mãe e as criadas tratavam os dois como se fossem doentes, diferentes de alguma maneira, o que sempre contribuiu para que Tasso fosse destacado do resto da família. Apesar de óbvio, o ressentimento dos irmãos não tinha como ser expresso de forma legítima, já que Tasso sempre se manteve respeitável, sempre atendeu as responsabilidades de estudante e filho que haviam sido assinaladas pelo pai e, mais tarde, sempre cuidou de sua esposa devidamente. Calado durante as refeições e festas de família, nunca bebendo, sendo formal de uma maneira que ninguém lhe ensinou a ser. Os irmãos tinham séria dificuldade de respeitar alguém que não bebia, quase toda a interação entre eles se dando através ou em torno de cachaça e cerveja. A sua introversão puxou o isolamento, que por sua vez fortaleceu sua introversão, e essa alça recursiva engrossava até hoje. Depois de estudar em Belo Horizonte, Tasso foi ficando ainda mais estranho, ainda mais retraído, lendo muito mais do que a faculdade obrigava, visitando a família na fazenda no máximo duas vezes por ano (enquanto Roberto, o médico, ia quase todo mês). Depois de casar com uma menina mais retraída que ele, uma prima distante também de Belo Horizonte, o afastamento se deu por completo. Mandava dinheiro para ajudar os irmãos mais novos começarem a vida, mas ninguém ouvia de sua família. Há décadas que ele não visitava ninguém nem no natal.

No final da década de cinqüenta Tasso ficou excitado com o projeto de Brasília, com tudo que ele acreditava que a cidade representava para o que ele chamava de Humanismo Brasileiro, e assim que descobriu uma oportunidade concreta de emprego, se mudou prontamente para lá com a mulher grávida. Não havia nada quando chegaram, a vó disse, só barro em todas as direções. Ela não lembra de uma época em que Tasso tivesse tão animado, tão bem disposto com as coisas. Mesmo depois de se assentarem num bom apartamento a vida era mais custosa do que em Belo Horizonte. Leite era racionado e as poucas lojas viviam vazias. Eles foram a primeira família a se mudar para aquele prédio onde moravam até hoje. Dois dias depois se mudou a família Ribeiro, gente de Recife com quem Tasso logo brigou.

Tasso havia se desapontado com  Brasília, mas não sabia dizer exatamente porque. Ele esperava alguma coisa maior, esperava que alguma coisa se realizasse ou se afirmasse de forma inequívoca quando a cidade fosse inaugurada, como se um esforço tão monumental precisasse obter um efeito monumental no mundo, como se todo mundo que viesse pra cá de alguma forma tivesse que se envolver com aquele desenho, com aquela vontade de instaurar uma ordem, começar alguma coisa, levar o Brasil e a humanidade a sério. A avó contava que logo quando as obras foram diminuindo e a cidade foi ficando pronta ele teve uma fase deprimida, parou de encontrar os poucos amigos que tinha, se tornou ainda mais calado do que era e começou a ler mais do que já lia, a fazer quase que só isso. Quando o golpe veio, e a UnB em seguida foi esvaziada, ele entrou num humor soturno derradeiro do qual nunca saiu.

— Ele lê muito, seu avô, né, sempre, sempre leu muito assim desde que eu conheço ele tá sempre com um livro, sempre escrevendo nos livros, sempre encomendando e mandando cartas e pedindo catálogo e brigando com os moços da livraria que não chega. Se tem uma coisa que realmente é ele e ele gosta são os livros dele. Tem uma cultura enorme, sabe tudo quanto há, mesmo, mesmo, se quisesse poderia até dar aula, que eu já falei com ele Tasso por que você não dá aula? Mas ele diz que esses meninos não sabem de nada, que ele não teria paciência, e é verdade, né, ele não é paciente de jeito nenhum, isso não dá pra dizer que ele é, não.

       Enquanto tentava ler as revistas que trouxe, Murilo ouvia as anedotas distraídas e compridas da avó, juntava à imagem daquele senhor rabugento. Imaginava aquela vida comprida povoada de construções mentais enormes e despovoadas, de uma introversão profundamente enrodilhada em si mesma. Murilo nunca tinha visto alguém daquele jeito, ele não sabia nem que dava pra ser assim.

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