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De todas as muitas vantagens trazidas pelo seu sucesso considerável nos últimos 15 anos, Solano Magalhães Camargo (filho de Margareth Pinto de Souza Aguiar Magalhães e de Antônio Pedro Moreira Camargo, nata da sociedade carioca, os dois, ela herdeira e presidente da terceira maior empreiteira do país) certamente se apegava antes de tudo a poder ficar pelado ou seminu quando quisesse, ou quase.

       Já era difícil vê-lo com muita roupa antes disso, mas depois que uma obra sua chegou a vender por quase um milhão de dólares, isso já quase dez anos atrás, Solano praticamente não mais vestiu uma camisa. Os seus sessenta e poucos anos lhe davam alguns chumaços brancos no peito cabeludo e magricelo, cavado pra dentro. Seus braços quase esqueléticos tavam frequentemente fazendo um Z egípcio prum lado e pro outro, quase que como pontuação do que ele falava, e devia ter pelo menos vinte anos que Solano não passava mais de duas horas desperto sem estar bêbado, cheirado, fumado ou sob o efeito de algum remédio careta obtido de algum médico amigo seu. Calça só de couro (ou moletom pra dormir no frio). Só em viagem de avião podíamos vê-lo de camisa e bermuda e era só decolar que ele desabotava ela toda, deixava a pança derramar-se sobre a cueca e a braguilha arregaçar o máximo que podia. Quem reclamasse era atendido com um sorriso mordendo a língua ou com as mãos fazendo óculos de cima pra baixo. Quem reclamasse de novo depois disso talvez levasse uma mordida de leve nos dedos.

Ele quase só fazia esculturas desde os anos oitenta, embora as tenha chamado, nesse meio-tempo (por ordem), de composições técnico-orgânicas, plastiformas, bichos-coisa e objetos (des)encontrados. Nenhuma delas, e muito menos os seus nomes, vingavam muito, apesar do encorajamento pouco entusiasmado em algumas resenhas de amigos ou amigos de conhecidos. Solano tem hoje certeza do valor extraordinário de todas essas obras, não só estético como ético e político. Era só a sua personalidade artística que não tinha ainda plenamente desabrochado nessa plena flor da cultura nacional, além do provincianismo insuportável dos trópicos que havia impedido por tanto tempo que sua grandeza fosse adequadamente reconhecida.

Pedro, seu filho, começou a usar aparelho aos vinte e dois anos, por opção, e mesmo depois de dois ortodontistas dizerem que não havia mais o que se corrigir ele foi atrás de um terceiro que encontrasse ainda defeitos a serem melhor modelados. Ainda morava com o pai apesar de ter formado em engenharia civil dois anos atrás. Era difícil vê-lo sem camisa social (o máximo que ele transigia era uma camisa polo), quase impossível vê-lo sem calça jeans e cinto de couro marrom ou preto. A sua reação diante de qualquer manifestação artística um pouco mais pretensiosa ou metida a besta (como ele chamava) era de sorrir com o canto da boca e fremir um pouco as sobrancelhas. Quando alguém dizia não conhecer a obra de seu pai ele sempre dizia a mesma coisa, de preferência bem alto, se ele tivesse por perto:

— Parece assim uns bagos dependurados, nunca viu?

— Acho que não.

— Uns bagos assim ou umas tetas, mas parecem mais bagos mesmo. Meio derretidos. Antes alguns tinham mamilos, mas mamilos estranhos, todos espiralados, às vezes pra dentro. Hoje isso é raro.

De fato pareciam tanto bagos quanto tetas, as obras mais famosas de Solano. Adquiriam as formas mais diversas de totens, cetros, estandartes, poltronas, chocalhos, pochetes. Mas eram sempre pilhas sobrepostas de bolas pendendo, com textura de pele, às vezes mamilos, às vezes pelos esparsos.

Era rara, quase inexistente, uma foto jornalística de Solano em que ele não estivesse de alguma forma interagindo com um de seus artefatos, geralmente de maneira cômica e sugestiva.

Pedro só foi descobrir que quase metade da atividade comercial galerística de seu pai era lavagem de dinheiro recentemente. Isso só fez trazer um carimbo oficioso e racional a um incômodo (frequentemente raiva, mesmo) que ele sentia bem mais difuso e desde sempre, desde antes do pai fazer tanto sucesso.

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