38.

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Murilo ficou deitado enquanto a avó saía do quarto, mas logo percebeu que não dormiria tão cedo (e que talvez isso nem fosse exigido dele). Saiu devagarinho do quarto, andando com muito cuidado. A vó assistia televisão na cozinha sem prestar muita atenção, jogando sucessivas partidas de paciência e falando consigo mesma. Murilo ficou na sala com o cachorro, no escuro, puxando das prateleiras os discos de vinil e achando muita graça das figuras inesperadas e dos velhinhos sorridentes ou carrancudos que apareciam ali de terno ou de suéter junto de nomes estrangeiros cheios de várias consoantes e acentos que ele não sabia que existiam. Leu uma das revistas que trouxe na mochila, uma do Homem-Aranha em que ele tinha que lutar contra o Abutre, tentando demorar em cada quadrinho muito mais do que o estritamente necessário, para que ela não terminasse rápido demais.

No dia seguinte, Murilo acordou cedo e ficou em silêncio na cama de olhos fechados. Depois da barriga reclamar por um tempo, que pareceu muitíssimo comprido, decidiu ir procurar café da manhã e ficou muito feliz de descobrir a existência de biscoitos de maizena na mesa e a liberdade de assistir televisão sozinho na cozinha por algum tempo. Assistiu “Pesca e companhia”, “Siga bem caminhoneiro” e parte de um desenho animado do qual ele não gostava por motivos muito bem delineados que ele vivia formulando e reformulando, embora nunca tivesse tido a chance de explicá-los para ninguém.

O almoço foi silencioso e menos tenso do que Murilo antecipava, mas o seu avô pareceu muito incomodado com a presença de nuggets de frango na sua mesa, o tempo inteiro olhando pra eles com uma cara revoltada que Murilo não conseguia entender.  Depois de comer, Tasso pôs um disco pra escutar e ficou cochilando no sofá. Era a primeira vez que a porta do seu escritório ficava aberta e Murilo decidiu dar uma espiadinha.

 Encontrou uma biblioteca extensa e bem montada mas desorganizada no momento, uma mesa de trabalho repleta de de papéis, lápis afiadíssimos, esquadros, canetas, livros, cadernos e pequenos objetos de madeira, tudo encaixado e limpo, um encadeamento de objetos elegantes e auto-suficientes, iluminados pela cimitarra grossa de sol na parede.

Murilo estava um pouco tenso de estar ali. Ninguém havia dito que o escritório estava além de seus limites, mas essa compreensão parecia tácita. Nem a sua avó havia entrado ali desde que ele chegou. Notou que não havia poltrona nem cadeira alguma no escritório. Tinha uma rede amarrada num canto, mas só. Além da escrivaninha comprida que parecia servir basicamente de depósito de livros e papéis amontoados, Murilo notou no centro do escritório, virado para a janela, um móvel alto de madeira que parecia um púlpito ou um suporte para partituras, guardando folhas brancas todas escritas e um lápis. Murilo só intuiria isso alguns dias depois, mas aquele era o suporte que o avô usava para ler e escrever, o que ele aparentemente sempre fazia em pé.

Enquanto tentava ler as lombadas dos livros, Murilo ouviu um barulho fraquinho de uma porta fechando atrás dele. Ele virou assustado para encontrar o avô sério diante dele, como que assustado com sua presença. Óculos quadradões e bem grossos, de aro de tartaruga, os olhos que quase sumiam lá dentro. 

— Você gosta de ler?

A pergunta havia saído num tom muito estranho, difícil de se posicionar. Parecia bravo, como se ler fosse um hábito muito condenável, quase incompreensível. Por isso Murilo não conseguiu responder, ficou encarando o avô de volta, esperando mais instruções.

— Sim.

Ele que havia dito isso? Aparentemente sim.

O avô sorriu e tocou o topo de sua cabeça com a mão, virou as costas, pegou um livro da estante e o abriu no móvel de madeira, retirando do bolso da camisa uma lapiseira e a depositando perto do livro. Não fez mais nenhum gesto na direção de Murilo, que continuou ali um tempo observando, sem saber se devia sair ou não.

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