37.

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Nílson saiu desorientado do encontro com o gringo. Ele não via o Renato desde 2009, mais ou menos, quando passou no concurso da ABIN e saiu de Belo Horizonte. Acompanhou suas metamorfoses de longe por anos até perder de vista. Fez uma varredura rápida e confirmou a impressão que já tinha. Depois de uma presença muito ativa e falastrona na internet durante uma década, Renato havia sumido do mapa em 2013. Bem quando a versão beta do CABOL foi lançada, ele percebeu.

Nílson não tinha esperança de conseguir encontrá-lo tão cedo, e tampouco conseguiu levar a coisa toda muito a sério. Disse pros chefes que precisava viajar em diligência do caso com os norte-americanos e foi gastar três diárias em Natal, pegando praia todo dia.

Mas o gringo entrou em contato de novo, marcando de encontrar em BH na véspera da semi-final contra a Alemanha, enviando o ingresso do jogo por DHL expresso. Geral na repartição ficou com inveja, achando importante. Nílson decidiu mostrar serviço, chegou em BH dois dias antes do encontro e foi visitar Tamires em Ouro Preto, uma amiga em comum dele e de Renato que já o havia abrigado por períodos longos no passado.

Tinha pelo menos cinco anos que Nilson não ia lá. Era a única cidade brasileira que ele achava bonita de verdade, mas se surpreendeu em não sentir absolutamente nada quando sua vista pegou as ruas depois de uma hora e pouco na estrada, as igrejas no fundo e até a névoa difusa se alastrando baixa pela serra como fios esparsos de algodão. Era a configuração ótima da vista da cidade e, ainda assim, nada. A casa da Tamires nunca esteve bem-cuidada, mas parecia em pior estado do que ele lembrava. Vidro quebrado na janela da frente, o muro todo pichado do lado de fora, cheio de lixo no jardim (dezenas de latinhas de cerveja e refrigerante, coisa que ela jamais consumiria, ele pensou, devia ter sido jogado pelos babacas dos foliões no último carnaval). Chegou a achar que talvez tivesse se mudado, mas sabia que era bastante improvável. Tamires tinha motivo pra nunca querer sair daquele lugar.

Bateu palma e gritou três vezes, sem ouvir resposta de dentro. Procurou campainha e encontrou a carcaça de um interfone com fios dependurados. Empurrou a porta metálica esperando encontrar resistência, mas ela abriu de uma vez, com ele quase caindo. A porta da casa também tava aberta e foi depois de abri-la que encontrou Tamires esparramada em almofadas, no chão, com fones de ouvido e um casaco de moletom apesar do calor guardado na sala. Os olhos dos dois se cruzaram de imediato. Ela tomou um susto, tira os fones.

— Caralho

— Oi.

— Cê tá louco? Que merda que cê tá fazendo aqui?

— Bom te ver também, Tamires.

— Não fica de merda, tu entra aqui do nada aqui, caralho. Porra. É assim que te ensinam na porra lá do teu trabalho, imagino.

— Eu tentei gritar, bati na porta. Tu não devia deixar ela aberta, aliás.

Ela se acalma um pouco.

— Não lembrava de deixar aberta. Tem uns dias que eu não saio. Mas cê sabe direitin como que foi a última vez que eu te vi. Você não veio porque tá com saudade, Nílson.

— Como é que você sabe?

— Eu poderia te dar uns dez motivos. Pra começar o fato deu te xingar na internet quase semanalmente.

— Eu tava tentando ser educado, Tamires. É claro que eu não vim aqui brigar sobre política.

— Desembucha, então.

Ele olha bem pra ela e tenta fazer uma cara séria e compadecida.

— Qual foi a última vez que cê viu o Renato?

— Puta merda, nem lembro. Por que?

— É uma história comprida e eu nem posso te contar ela toda. Mas eu preciso falar com ele. Assim, urgentemente.

Tamires enfezou a cara com má vontade e depois modificou a expressão para algo que Nilson entendeu como “tu nem me conta a história toda e ainda acha que eu vou te dar algo?”.

— Eu sei que você não confia mais em mim, mas ele tá em perigo. De verdade. Tão achando que ele tá metido com uns negócios que ele não deve ter nada a ver. Espero. Coisa séria. Sequestro, o caramba. Eu posso não morrer de amores pelo Renato hoje, mas não tenho rancor dele. Juro que não tenho. Eu quero ajudar.

— Oi? Sequestro? O Renato?

Ela olhou Nílson de cima a baixo, a cara franzida, os braços cruzados. Tamires parecia tentar julgar se conseguia acreditar naquilo ou não, dava pra ver o sopeso de considerações pendendo pra um lado e pra outro. Ela sempre teve um rosto involuntariamente expressivo, que deixava sair muito mais do que gostaria. Era uma das muitas coisas que Nilson gostava nela, inclusive. Ela agora fecha a cara e olha pro chão.

— Eu não sei onde ele tá. Não sei mesmo. Mesmo se eu quisesse te ajudar. Só posso dizer que a última vez que eu vi o Renato ele não tava bem. Deve ter uns meses, lá em BH. Tava falando uns negócio muito alucinado.

— Alucinado como? Mais que a média, assim?

— …

— Alucinado como, Tamires?

— O negócio é que eu não sei se ele tava brincando. A gente nunca sabe, né, com ele?

— Claro.

— Mas sim, bem mais que a média. Ele ficou falando como se tivesse viajado no tempo.

— Como assim? Devia ser piada. Ou ele tava muito doido na hora?

— Ele tava sóbrio, quase certeza. Até onde o Renato fica sóbrio, tipo, ele não foi claro. Mas que tinha viajado ou pelo menos tido umas visões do passado, ele ficava fazendo mistério, mas tava muito impressionado. Muito mesmo. Eu sei como que é o Renato tirando merda da bunda, improvisando besteira na hora e não parecia ser isso. Ou ser só isso. Ele parecia muito convencido de alguma coisa. Até assustado. E foi logo depois disso que ele sumiu. Não vejo ele tem tempo.

Nílson escutava com a cabeça baixa, anotando num bloquinho que tirou da mochila.

— Isso já ajuda, Tamires. Já ajuda muito.

— E tu não vai me contar mesmo?

— Não é interessante, Tamires. E nem sei se é bom pra você saber.

— Ah, tá, então, cê tá é me protegendo, né? Claro que sim.

Nilson se levantou, passou por uma parede larga quase toda coberta por um pano empoeirado.

— Posso ver o mural? Tá terminado?

— Pode não e não tá não. Tá do jeito que tava, ainda. Nunca mais animei de continuar.

Ele continou por alguns segundos segurando uma ponta do pano, olhando para ela. Acabou levantando e dando uma olhada mesmo assim.

— Cês são muito doido, viu. Cês são pouco doido não.

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