36.

Murilo nunca tinha estado naquele apartamento. Era ridiculamente perto da casa deles, não deu nem cinco minutos de carro. Da 706 até 308. Isso lhe pareceu estranho, como se estivessem escondendo aquele lugar por anos. Chegaram na portaria no final da tarde, cada detalhe inocente do prédio parecendo formar um conjunto ominoso (a parede de madeira com pedras verdes no chão, o porteiro gordo que parecia suspeitar deles, o cheiro de incenso no corredor, que Murilo nunca havia sentido e que achou perverso).

A porta foi aberta pela sua avó. Teresa era muito mais familiar do que o avô, mas isso não a tornava exatamente reconfortante. Sempre aparecia nos seus aniversários com dinheiro num envelope e dando desculpas pouco convincentes para o avô não ter ido. Gaguejava em quase qualquer frase, mesmo a mais simples e casual. Parecia achar que qualquer vago agradecimento por segurar a porta do elevador comportava inúmeras possíveis versões e revisões, gradações de etiqueta que ela tentava dominar sem sucesso. Nenhuma expressão parava quieta na sua boca, sempre oscilava pelo seu oposto, ia e voltava e se desculpava repetidas vezes.

—Opa, oi, querida, oi gente, tudo bom?

— Mãe, desculpa, a gente já tá com pressa, a senhora lembra de tudo que eu falei no telefone, né? Na mochila do Murilo tem também uns lembretes dos remédios. Se a senhora precisar de alguma coisa me liga. Os números também tão aí todos. O Válter tá esperando lá embaixo que a gente acabou se atrasando, ele tá muito nervoso de perder o voo, acho que eu devia ir logo.

A sua mãe voltou pro elevador antes que ele entendesse qualquer coisa. A avó tentava sustentar um sorriso trêmulo e o seu avô estava atrás dela sem falar nada. Uma expressão enojada. Assim que Murilo entrou Tasso murmurou alguma coisa inaudível, fez um aceno de cabeça dirigido a ninguém em particular e se fechou no que parecia ser o seu escritório.

A avó foi muito mais efusiva, mas os seus olhos e sua linguagem corporal pareciam desmentir todos os seus repetidos comentários que ele ficasse tranquilo e se sentisse em casa, a sua expressão conotando toda hora a preocupação dela daquela criança derrubar alguma coisa, quebrar alguma coisa, fazer algo errado, comer algo que não devia, tocar fogo na casa ou simplesmente entrar em combustão espontânea, a sua mera existência sendo obviamente causa para mais ansiedade do que ela seria capaz de suportar. Essa disparidade constante entre as suas palavras gentis e a sua aparência ansiosa deixando Murilo o tempo inteiro perplexo, sua cara franzida na tentativa de entender o que diabos estava sendo comunicado e como que ele deveria agir.

— Ô, meu filho, epa, que bom, né, tá aqui, tudo bom, vamo ver aqui o seu quarto, né, epa, só assim que – é, logo logo seus pais já voltam que é rapidinho, né, não fica assim preocupado não que logo – né. Vamo ver seu quarto que, opa, né, tá aqui já.

Teresa era muito magra e tinha olhos enormes, que pareciam dominar todo o seu rosto e mantinha sempre assustados. Mal preenchia as suas próprias roupas, todas escuras e recatadas, mangas e saias compridas e sem estampa. Era uma pessoa apagada e quieta, religiosa da maneira vaga com que avós costumam ser, gentil de uma maneira ansiosa, como se estivesse sempre enredada em uma série de obrigações sociais que ela não conseguia compreender tão bem, mandamentos misteriosos que ela sempre temia estar ofendendo de alguma maneira.

Ali na década de noventa o apartamento dos avós parecia congelado trinta anos atrás. Os únicos objetos mais ou menos atualizados eram a geladeira, o fogão e a pequena televisão na cozinha. Todo o resto era muito antigo, com cores esmaecidas e cansadas. A sala tinha no seu centro um aparelho de som enorme e metálico, com dezenas de vinis em volta, no lugar de uma televisão. No mais, o lugar parecia cristalizado, um cheiro sutil de velhice e mofo que Teresa fazia o possível para mascarar e amenizar com incensos que ela comprava de um rapaz cabeludo e muito gentil que aparecia na sua porta às vezes, neto da senhora do trezentos e dois.

As luzes estavam quase sempre apagadas, o que facilitava que você trombasse nos cantos com um cachorro comprido e magricelo esparramado entre os móveis. Um vira-lata cinzento de índole muito animada e disposta que Teresa havia ganhado da filha depois dela se mudar de casa (para deixar a mãe menos sozinha) e ao qual nenhum dos dois havia se afeiçoado direito, nunca tendo sido nomeado e que era desde então ignorado. Doze anos dentro daquela casa sem sair para passear, sem receber atenção, enxotado quando tentava buscá-la, há tanto tempo assim que hoje ele parecia até se desinteressar pelo mundo lá fora, perfeitamente esquecido de que havia espaço, luz, movimento e objetos mais interessantes do que aqueles impedimentos parados e surdos diante dele, que havia algo no mundo além daquelas superfícies macias e escuras, aquietadas. Ele parecia de fato em momentos até esquecer que ele mesmo existia, deitado no escuro num canto, entre móveis, acompanhando com os olhos os movimentos daqueles dois seres que diziam e faziam tão pouco além de lhe alimentar com restos do almoço e do jantar.

Murilo não gostava de cachorros, mas viu logo que não teria problemas com esse, que não havia o risco de se jogar em cima dele ou dar aquelas mordidinhas agoniantes que cachorros animados sempre dão. Até conseguiu, depois de vencer algumas barreiras dentro dele mesmo, passar a mão na sua cabeça. O cachorro virou-se pra ele alarmado, pareceu não entender o que era aquela sensação.

A avó narrava tudo que Murilo fazia, andando pela casa, como se quisesse se certificar que o que estava acontecendo fazia sentido.

— Você não tá com medo do cachorro, né? Epa. Ele não faz nada não. Ele não tá é bem, esse cachorro, na verdade, que eu já falei pro Tasso pra levar no veterinário e ele fala que não é o cachorro que tá assim, o mundo é assim, o que não é aqui nem ali, né, o cachorro não tá bem. Não mexe nele, não.

Depois de lhe dar janta a avó mostrou a sua cama no quarto que disse ter sido da sua mãe (presença confirmada num quadro com várias fotos preto-e-brancas de uma criança feinha muitíssimo parecida com ele que nunca tinha visto e cuja existência até então nunca tinha passado perto de imaginar, um pequeno animal que ele não conseguia de forma nenhuma ligar à pessoa que conhecia por ‘mãe’ e que passaria a assolar seus sonhos por meses, presença quieta num canto tornando tudo mais perigoso).