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Com quarenta e sete anos, Milton já foi mais magro, mas também já foi muito mais gordo. Chegou aos cento e sessenta quilos, no segundo, e mais curto, casamento, seu recorde pessoal, do qual ele ainda se lembra quase toda vez que se pesa (tanto para melhor odiar a si mesmo quanto para se consolar do seu peso atual).           

Tentou ser engenheiro civil, que foi o curso que seu pai escolheu pra ele, mas brigava em toda firma em que trabalhava depois de poucos meses, às vezes por discordar com veemência de alguma decisão imbecil de algum superior hierárquico, às vezes por mandar alguém à merda meio à toa, geralmente quando estava com dor de cabeça ou de estômago (que lhe acometiam as duas todo dia desde que ele se entendia por gente). Era viciado em música e se orgulhava de ouvir de tudo, de Sepultura a Milionário e José Rico.

A empresa de construção civil que tentou montar com um primo e um amigo (e dinheiro quase todo dos pais) acabou quando o amigo fugiu com o que restava do investimento inicial dos três. Depois de quase um ano de fracasso mal administrado e uma única obra mal completada, tendo vendido tudo que tinha dentro do escritório deles durante o recesso de fim de ano. Até as mesas ele levou, deixou só duas cadeiras e uma caixa de clipes de papel. Milton voltou para a casa dos pais. Jurou pra si mesmo, em voz alta, diante o espelho, jamais confiar em outra pessoa. Cumpriu essa promessa com integridade através de vinte e cinco anos e dois casamentos, até conhecer Renato.

Depois de dois anos estudando, acabou passando num concurso razoável de nível médio do Tribunal de Justiça. Desde então mora no mesmo apartamento de um quarto, com uma varanda apertada cheia de plantas, perto da Savassi e há anos aluga o sobrado que herdou da mãe pra uma família de mato-grossenses baixinhos de quem às vezes toma uns atrasos enormes, mas tem pena de reclamar.

Milton quando mais novo já foi rato de tudo que é boteco e buraco da área metropolitana de Belo Horizonte. No seu auge, conhecia mais alcóolatra, puta, banda punk vagabunda e cover drogadito do Raul Seixas do que potencialmente qualquer outra única pessoa em Belo Horizonte. Ele próprio só gosta de bebida, mas toma quase tudo que lhe oferecem, dependendo da companhia. Durante anos, nomeadamente aqueles em que esteve casado, ele praticamente nunca esteve em casa entre as sete da noite e as duas da manhã. Chegava no trabalho às dez e meia, ainda bêbado, quase todo dia. Andava por aí às vezes com sua kombi (customizada na parte de trás, com um sofá e um isopor) ouvindo tanto cds quanto fitas k7, que ele tinha na casa das centenas, em caixas. A cidade que lhe parecia só feia, morosa, suja e mal arrastada lhe parecia de noite ter todo outro estofo. Era mais perigosa, sim, mas também mais cheia de brechas inesperadas, esquisitas, com uma generosidade sonsa e eventuais acidentes felizes.

Primeira vez que Milton viu Renato não tinha como esquecer. Não tinha mesmo. Num muquifo que na época ele ia direto, lá pra 2009, chamado CAMPOS ELÍSEOS, cheio dos shows mais aleatórios que você pode imaginar. Muita gente imitando Roberto Carlos, Cauby, Amado Batista, dois anões que se apresentavam como Nelson & Ned. A maioria tinha esse rolê mais escrachado já de cara, outros iam vendo o naipe da casa e iam exagerando a própria esculhambação. Porque não tinha muito como cantar lá sem ter uns loucos gritando junto, te zoando ou te incentivando, às vezes os dois ao mesmo tempo. A não ser que tivesse vazio. Nesse dia tava vazio. Tava só Milton e duas amigas suas, prostitutas já bem além dos quarenta, ambas velhas conhecidas suas, quase dormindo, uma mexendo no cabelo da outra. Ninguém tava cantando e o som tava desligado, só a TV baixinha com um filme americano sem gente famosa passando. Daí do nada o único auto-falante velho de guerra liga, uma microfonia aguda logo interrompida para anunciar, lá de trás, a voz parecendo achar graça no que vai dizer:

—Sen-horas e Sen-hores, final-men-te, a grande atração da noi-te, o esperado, o incrível… GRANDE ENCONTRO.

Sai de detrás da cortina essa criatura. Tava vestido, ao mesmo tempo, de Elba Ramalho, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo. Chegava ser difícil entender a fantasia, mas Milton foi um dos que entendeu (dava pra ouvir as risadas de sacação irrompendo aos poucos, mínima em uns, esparrada noutros). Uma das pernas depilada vestindo salto alto, a outra você nem via, mas na hora Milton achou que era algum truque. E cantou Tesoura do Desejo alternando entre as três personalidades, mudando o canto de boca e a expressão com que cantava. Não que o ventriloquismo em si fosse essas coisas, Ramalho e Azevedo tinham quase a mesma voz e, na verdade, ele se mexia todo quando encarnava qualquer um dos três. Mas mesmo sem ser uma imitação bemfeita, o jeito que ele encarnava ali, baixava mesmo, virava os três, isso deixou Milton meio bobo, assim. Meio não. Bobo mesmo. Quem que era aquela criatura?

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