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Por anos, o avô Tasso era esse fantasma. Até que, quando Murilo tinha quase oito anos, os seus pais inventaram de viajar para os Estados Unidos pela primeira vez em suas vidas. Uma viagem para Miami planejada às pressas para aproveitar a extraordinária, quase literalmente incrível, paridade momentânea do dólar com o real. A mãe descrevia com uma excitação reservada e o pai com um tom de quem aproveita uma boa oportunidade quase por obrigação, porque não parecia fazer muito sentido recusá-la. Eles não viajavam de férias há anos, tinham um dinheirinho guardado. Murilo se recusou a acompanhá-los. A sua recusa não se apresentou com motivos, ele apenas repetia que não queria ir de jeito nenhum e ficava em silêncio quando os pais perguntavam o porquê.

Ele mesmo não conseguia formular pra si o motivo de não querer viajar, não conseguia colocar aquilo em palavras, mesmo depois desse ter sido o objeto de repetidos e calorosos debates nos teatrinhos encenados ali na sua cabeça, suas várias vozes atuadas por atores famosos (Lima Duarte, Marisa Tomei), erguidas em tons acusatórios, apologéticos e conciliatórios que no final só conseguiam concordar que a idéia de ir pra tão longe era inquietante, no mínimo, e, no máximo, muitíssimo assustadora.

Sair de casa para Murilo era sempre causa de muita ansiedade e insegurança e, ao imaginar uma viagem tão comprida e distante, a sua imaginação prontamente apresentava infinitos cenários que dificultassem ou impossibilitassem o seu regresso, desde queda de avião até a irrupção surpresa de uma guerra mundial. A sua mãe insistiu algumas vezes para que ele fosse ou ao menos explicasse porque não queria ir. Murilo apenas continuava olhando para o seu prato ou para a janela do carro, seus lábios instando começos de sílabas que nunca chegavam a se formar, seus olhos vagos, como se calculassem uma soma momentosa.

Murilo chegava a começar a falar, mas falava muito baixo e, quando percebia, ele estava se dirigindo a alguma outra figura na sua cabeça que não a sua mãe. Tomava um tempo enorme aparentemente debatendo consigo mesmo, sua expressão se modulando em variações esquisitas que a mãe não entendia, mas no final não conseguia oferecer nenhuma resposta.

Eventualmente decidiram que viajariam sem ele. O pai falou várias vezes que isso aconteceria como se fosse definitivo, embora Murilo pudesse ver que ainda não era. Uma vez ligou da rua e falou que tava na agência de viagens, falou pra chamar o Murilo, que ficou em silêncio no telefone quando atendeu.

Preocupados com os preparativos da viagem, só na semana antes é que os dois perceberam que não teriam com quem deixar Murilo, os dois até então igualmente confiantes no irmão de Válter, que eles descobriram que iria para Caldas Novas.

Copo na parede.

—Não tem nem duas semanas que ele me disse que não ia viajar. Nem pra isso dá pra confiar naquele bosta.

—Não fala assim.

—E o menino quer porque quer ficar, não dá pra entender. Tudo que esses moleque quer é ir pra Disney, conhecer a porra do pateta e ele nem tchum.

—Ele é diferente, ele é mais retraído.

—Ele não é retraído, ele é *****.

—Não fala assim.

A única opção plausível que se apresentou, no dia seguinte, já no café da manhã, Murilo e o pai comendo bisnaguinhas com o café coado preto que nenhum dos dois adoçava, era que Murilo ficasse com os avós maternos. O Murilo prefere sucrilhos, mas bisnaguinhas são também bastante satisfatórias. Principalmente com requeijão. Ele já pensou em falar que gosta das bisnaguinhas, mas a cena na sua cabeça lhe pareceu muito entravada. Murilo concluiu aos doze que quase toda interação que ele tinha com os outros era não só entravada e pouco satisfatória, nenhuma das partes conseguindo se entender bem, mas que cada vez que ele interagia ele ainda tinha a impressão de que piorava, de que eles estariam quebrando aquela interface de alguma maneira.

Era preferível, então, não falar tanto com os outros. Isso não se mostrou tão difícil assim, Murilo percebeu. A mãe aos poucos pareceu se acostumar e o pai há tempo não mais tentava, então Murilo foi reduzindo o nível de interação de uma maneira que lhe pareceu equilibrada e controlada. Ele se sentia melhor assim e esperava que os pais concordassem.

Murilo chegou no prédio dos avós, muito perto da casa deles, no final da tarde de um domingo, com uma mochila roxa da Paka-lolo, onde ele guardava um Game Boy e quatro revistas em quadrinho (duas da Turma da Mônica, duas do homem-aranha) que ele com muito esforço tinha evitado ler durante a semana para guardá-las para aquele período difícil.

  A mãe pediu desculpas quatro vezes no caminho por fazê-lo passar por aquilo, percebendo a rigidez dos seus ombros ao ajeitar a manga da sua camisa puxada pela mochila, o pavor o deixando cada vez mais retesado. O pai também notou a sua tensão e tentou tranqüilizá-lo com uma história bastante esparramada envolvendo dormir na casa de um primo em Anápolis, quinze anos antes, uma história cujo propósito de estabelecer um paralelo e uma identificação logo logo se dissipou no tanto que o seu primo Ronaldo era gordo e incapaz de compreender a inflação galopante da época, todo mês achando que a sua padaria conspirava pessoalmente contra ele ao aumentar o preço da mortadela e que foi subitamente interrompida assim que ele percebeu que tinha perdido o fio da meada, concluída de repente com a moral inesperada, súbita e bastante incongruente, de como passar uma semana com os avós nunca matou ninguém. O que dificilmente era verdade.