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Depois de colocar seu moletom azul-escuro com capuz e fechá-lo com zíper, Murilo checa os bolsos, abre a porta da sala, bota os fones de ouvido e põe no seu MP4 velho de guerra pra tocar uma aula sobre endossimbiose que ele tinha baixado no dia anterior.

Ele tinha pastas e pastas no computador com arquivos do tipo, todos baixados de graça, só alguns ilegais. As aulas eram frequentemente boas, algumas eram excelentes. Às vezes ele encontrava aulas mais antigas, com os donos das vozes já mortos. Os discípulos mais fanáticos botavam pra jogo registros craquelados e ruidosos, que Murilo tinha de ouvir no máximo, apertando o fone contra o ouvido para entender, às vezes até doer, o som ecoando no que deveria ser, no mais das vezes, um daqueles prédios universitários falso-góticos de universidades centenárias e elitistas.

Sempre tinha piadas contextuais ou riscos no quadro-negro que não se deixavam capturar pela gravação, que se perdiam no trajeto tão fantástico que permitia que as ondas sonoras daquela senhora de dicção entusiasmada na Califórnia fossem gravadas e transmitidas até Brasília, até o MP4 barato que Murilo comprara  na Feirinha do Paraguai dois anos atrás, à guisa de presente de Natal da mãe para ele próprio, de um chinês bravo que insistia em chamar o aparelhinho de iPod.

Ele fecha a porta metálica, tranca com chave e anda apressado para o final da rua. A aula que corre nos seus ouvidos fala sobre a sopa primordial e a promiscuidade entre as bactérias que precedeu a formação das primeiras células nucleadas. Ele já sabia um pouco sobre o assunto, mas tinha tempo que havia lido sobre. Era um troço que lhe dava comichões maravilhosos na imaginação quando descobriu, mas que agora parece já recoberto pela poeira do hábito, como quase todo o resto.

De tantos textos engolidos, ele hoje só conseguia agora recuperar uma ou outra frase (ou nem isso, apenas gestos vagos em direção de conceitos frouxos que rebolavam pela sua cabeça como  contêineres soltos dentro de um navio tumultuado).

Todo dia Murilo sentia que relembrava e remoía umas ideias velhas, adquiridas com esforço (de prensas agravado, ele lembra sem querer, sem lembrar de onde). Todo dia ele tentava recapitular o troço todo em algum momento, desde o universo expandindo, nas bolhas de ordem no meio da equalização geral, às ilhas de complexidade emergente que deram em bichos, compostos de água, que saíram andando por aí até dar em primatas ansiosos e pouco peludos que dominaram todo o resto e agora jazia, autocomplacente e confuso, no topo da cadeia. Era muito trágico, no todo, ainda mais ali naquela seção dos trópicos. Violento e burro, na maior parte do tempo. Mas era cômico, também (ele argumentava consigo próprio), se você assistisse o troço acelerado 24x e soubesse onde parar.

Com vinte e seis anos, ele se sentia velho, já de uma maturidade derrubada, passando na sua cabeça dramática e impessoal com o dedo nos contornos macilentos de pedra porosa, os finais e pernas de estátuas há muito amputadas. Ele resgata com os dedos no bolso do casaco a embalagem de Negresco de ontem, nota que ainda há no fim um derradeiro biscoito ali, onde ele supunha estar apenas sua forma fantasmática. Ele se revela mole, quase intragável. Mas é devidamente tragado.