05.

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A chuva fininha como insetos mínimos vai pegando pelos ombros e os lados do seu corpo. Cátia e Álvaro saem do instituto público de saúde mental onde a mãe mora agora e caminham até o ponto sem falar nada. Álvaro começa a falar de um desenho animado japonês que ele assistia pela internet, mas Cátia não conseguiu nem fingir interesse. Ele acaba se calando depois de algumas frases.

A mãe tava mais grogue do que o normal daquela vez, mal conseguiu trocar três frases com eles. Mas os reconheceu direitinho. Chegou a beijar a cabeça do Álvaro de um jeito lindo, chamando ele de meu nego (coisa que ela não fazia há anos), o que deixou Cátia de peito apertado. Pra ela a mãe nem olhava diretamente, como se assustada e confusa pela mulher feita diante dela.

Depois de quarenta minutos esperando o ônibus, eles descobriram com uma senhora passando que ele não passava lá no domingo. Cátia jurava que já tinha pego ele ali. Agora tavam andando até o metrô, que era longe pra cacete. Quando começam a andar em silêncio, ela lembra da Fabiana e do que tinha acontecido ontem. Com a cabeça na mãe, tinha esquecido disso por algumas horas.
Achou estranho que ela não respondeu a mensagem dela perguntando como foi, nem visualizou.
Às vezes ela bebeu, transou adoidado e chapou cedo. Cátia tava torcendo por isso. Com medo de ter metido a amiga numa fria. Aquele Wellinton não parecia tão perigoso, mas vai saber. E veio de repente um cagaço de que alguma coisa tivesse dado muito errado. E ela percebe que não quer mais caminhar. Não quer mesmo.

Cátia para e olha o irmão continuar, e logo senta no degrau de entrada de uma loja de tênis fechada. Põe a cabeça entre os joelhos, aperta as orelhas e têmporas. Ele demora uns doze passos para perceber que ela parou. Ele fala quase gritando, mas sem raiva.

— Vamo, Cátia.

Ela tem que levantar. Mas começa a pensar nos pés e olha pra eles nos tênis feios em que estão metidos. Que ela herdou da mãe quando ela parou de andar. Com a aparência genérica de tênis de corrida, prateado com uma placa de listras roxas. Pensa em como tanto o tênis quanto os seus próprios pés são objetos esquisitíssimos. Pensa na expressão planta do pé e, em seguida, em pés de cujos dedos brotam raízes, rapidamente enroscadas nas grades de bueiros, depois em como as raízes das árvores são os seus pés. Deixa a cabeça se curvar e apoia nos braços cruzados. Pensa na Fabiana e no peguete dela indo fazer lá o troço esquisito com os gringos. Ela tinha sonhado com a máquina, sem nunca ter visto como ela é. Sonhou com um aparelho que era como aqueles vaporizadores enormes de salão em que a pessoa põe a cabeça, com o cara sem rosto sentado nela e a Fabiana rodopiando em cima dele daquele jeito fingido e exagerado de estrela pornô. Ela assistia de longe, ou numa tela, não era claro.

— Porra, Cátia. Parece que sou eu.

Ela sorri, mas ele não vê. Álvaro sorri até mostrar o aparelho, percebe e fecha a boca, deixa só uma fresta mínima ainda rindo de leve. Como que ela explicaria pra ele? Não teria nem como começar. Ele, até outro dia, não sabia nem que ela transava. Não sabe que ela fuma maconha quase todo dia tem anos, que ela cheira e toma bala sempre que oferecem. Ainda acha, na inocência tonta, que a extensão da cumplicidade deles ainda alcança onde alcançava  anos atrás.

O celular dela treme. É um número desconhecido, mas ela atende.

— Cátia?

— Eu.

— Puta merda, que bom. Que alívio. Tava com medo de não lembrar do teu número direito.

— Que foi, menina? Cê tá sem celular?

— É. Tou sem celular, tou sem nada aqui.

— Que que houve? Tá tudo bem? Cê tá tensa. Como que foi ontem?

— Claro que eu tou tensa. Acordei numa casa que eu não sei de quem é, sem minhas coisas, sem nada.

— Oxe. E o Flávio?

— Não sei, não tá aqui.

— E como que foi o negócio?

— Que negócio?

— Você não lembra? Ué.

— Não.

— Eita.

Álvaro a encara de um jeito inquisitivo, faz uma cara de tonto, tentando fazer ela rir. Ela nega com a cabeça. A expressão dela se crispa toda, de repente, e a dele responde, entendendo que é sério. A chuva aperta.

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