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Aquele era um dos bairros mais nobres da cidade e o mais tradicional, mas era uma parte pouco valorizada, e tarde da noite a rua ficava um pouco mal-encarada. É uma linha de casas baixas, todas com grade, caixinhas alocadas do mesmo modo. Viradas de um lado para uma rua interna das 700 Sul do Plano Piloto, e do outro para um espaço verde que funcionava como terra de ninguém entre as casas, fechado em copas de árvores entranhadas, debaixo de onde sempre se viam de dia alguns retângulos de papelão com ocupantes quietos, sacos plásticos com suas poucas posses pendurados nas árvores maiores. A maioria dos moradores de rua da região circulam por um pequeno perímetro, alternando de abrigo antes que algum morador reclame. Alguns Murilo vê há anos, mas nunca consegue cumprimentá-los. No máximo faz acenos tímidos com a cabeça que nunca são correspondidos.

Murilo não quer passar por ninguém agora, por isso dá uma corrida rapidinho até o final da rua, até chegar na W3, toda vazia a essa hora. Ele sabe que é muito covarde e não tem nenhum problema com isso. Quem tem cu tem medo era o único dos bordões que seu pai repetia sempre com o qual ele concordava integralmente. Prestando atenção no caminho, ele percebe que deixou sua atenção fraquejar e perder umas duas frases da aula que tá escutando. Mas eles tavam falando de coisas que ele achava que conhecia mais ou menos bem.

A sua cultura, quase toda autodidata, tinha sempre essa modelação errática, pegada e largada, descontínua, de aparência mambembe e vastidão descontrolada. Ele costumava achar que, apesar de toda dificuldade, havia uma solidez ali, que ele de fato conseguia se posicionar dentro daqueles cenários antigos enormes, no meio daquelas colunas imensas, mas nem sempre a sua confiança era tão firme.

O único semestre que ele fez de letras na UnB o deixou muito desapontado, a sua impressão de um menino admitidamente arrogante e tímido de dezessete anos foi de que o que se passava não era muito mais profundo do que os artigos da Wikipédia sobre os autores e temas. Não tinha nenhuma paciência nem para o proselitismo político e nem para o hermetismo elitista da maioria dos professores, a boca cheia com que ambos os tipos declamavam os nomes franceses e alemães dos seus mestres, e não conseguiu se enturmar tampouco com os colegas (não que tentasse).

Alguns foram simpáticos com ele até desistirem pela falta de resposta, que tomavam por grosseria. A maioria das pessoas olhava para ele com uma certa apreensão constrangida de quem olha um louco. Gostou muito de um professor, só, um cearense velho e sorridente que ensinava grego e exigia que suas turmas lessem pelo menos uns dez clássicos grossos por semestre. Conversaram rapidamente sobre Milorad Pávic, uma vez, e sobre o livro egípcio dos mortos.

Murilo achava bem melhor ir atrás sozinho de tudo, baixar livros pirateados em .pdf, montar pequenas ementas provisórias para dar um sentido mais programático para a educação que ele tentava dar a si mesmo.

Lacunas eram notadas e preenchidas com diligência, itens verificados de uma lista que nunca terminava, nem nunca ganhava uma versão definitiva. Amigos eram feitos com a específica intenção de servir de orientação para áreas e autores específicos, especialistas de quem ele se aproximava com um mesmo e-mail que ele tentava fazer soar simpático e curto, sempre um sorrisinho e dois acentos circunflexos vagamente emoticonados denotando suas boas intenções.

Apesar da seriedade que ele tentava manter pra educação que dava a si mesmo, Murilo também se distraía muito, espalhava sua atenção até que ela se esgarçasse. Depois de uma adolescência estudando literatura com uma forte tendência anglo-saxã e germânica, ele hoje ia atrás a cada semana de algum novo assunto que ele não dominava tão bem, aumentando um domínio superficial e anedótico sobre as coisas, sobre os vários ramos concretos e pontiagudos da realidade e seus documentos e registros todos. Os arquivos não se esgotavam nunca, e ao que tudo indica daria para enchê-los de ar quente, como balões, por quanto tempo ele aguentasse.

Ele gostava muito de listas, vivia reunindo recomendações de autores que respeitava, traçando planos de leitura pras próximas semanas, meses e anos. Ele não tinha mais o ritmo frenético de moleque, a voracidade alucinada dos seus quinze pra vinte anos, mas ainda assim o rol de coisas que ele sentia que precisava absolutamente, conhecer estava sempre crescendo, apesar dos golpes que ele empreendia para diminuí-lo (ou ao menos conter seu crescimento).

A sua vida acontecia inteiramente nessas coisas, acumulada nessas atividades e na autoconsciência a respeito delas. Algo que percorria ele por dentro como um osso, que ele manejava até onde dava, mexia pra tentar aprender, luz dentro dum cano, uns mesmos ecos rebatidos e teimosos que há um tempo ele espera se confundirem com uma voz, sem que nada parecido com isso aparecesse.