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Falar do mítico RENATO é um desafio, claro. Difícil saber por onde começar. Desde a tragédia da última terça que começou a pipocar de vídeo e de matéria sobre ele, quase tudo distorcido ou mentira deslavada mesmo. Poucos conhecem ele há tempo como eu pra poder botar as coisas em perspectiva. Por isso o textão.

A sua OBRA é vastíssima, isso não se discute. Mas quase todo o resto está aberto para negociação com as hordas de fãs e exegetas. Vão te dizer que ele nasceu em 1978, em 1982, no Piauí, em Florianópolis, no Rio de Janeiro.

O que torna confusa a atribuição de sua obra, em parte, é o fato de que o artista, ele próprio, descreveu sua atividade de maneira muito diferente ao longo dos anos. A divisão proposta pela Teresa Trigueiro, de Cuiabá, é que desde 2003 até 2008, mais ou menos, teria ocorrido a fase propriamente artística, no sentido tradicional, ainda que ocorrendo quase inteiramente fora do circuito institucional-comercial, principalmente em ruas, praças e parques de Belo Horizonte e São Paulo. E depois, claro, a obra ético-política, como ele chamou numa entrevista, de 2008 em diante, depois do que ele chamava sua iluminação (e vamos falar disso adiante). É pela segunda que Renato se tornou conhecido, naturalmente, mas para os poucos que acompanharam o processo de maneira inteligível parece importante explicar a primeira para entender um pouco melhor a segunda. Ou, quem sabe, incompreendê-la um pouco menos pior.

Sei de duas bandas do Renato cuja existência se confirma tanto por fotos quanto por gravações. A primeira são OS ORLANDOS, formada por quatro pessoas (Renato nos vocais, Pedrusko na bateria, Bárbara na guitarra e Tamires no baixo). Lançaram na internet um EP chamado A HORLA, que consistia numa meia hora de barulho, ruído de guitarra, microfonia e barulho de bicho sobreposto com uns poucos minutos que dava pra identificar como música, música mesmo. As letras são ininteligíveis. No myspace que fizeram da banda, quando o site já era basicamente um morto-vivo, constava uma foto em baixa resolução onde podíamos ver todos os integrantes sem camisa e cobrindo com as mãos os peitos e os rostos uns dos outros, exceto os da Tamires, cobertos por esparadrapo.

A outra durou mais tempo, de antes, daqui de BH mesmo. Punk bem tosco, dá impressão de que gravaram dentro duma máquina de lavar. Ouvi uma vez na casa de um amigo, mas nunca consegui os arquivos. Não me pareceu ser nada de mais.

Há menções do próprio Renato e de outras pessoas falando de outros projetos musicais, mas sem indícios de registro sonoro ou visual.

Seu poema mais curto, que eu conheça, chama-se “A Voz do Mução”, o poema inteiro em dois versos: “essa esfinge / vórtice” (Mução sendo o apelido de um radialista pregador de trotes, e não o apelido de uma muçarela barata, como aventurado por Sandro Gomes no seu canal).

O poema mais comprido sendo o “Salve Geral”, naturalmente, com suas centenas de milhares de caracteres e que, em pelo menos uma versão, se transmitia num arquivo .doc que se desenrolava infinitamente até dar pau no programa, com nome de diversos amigos e conhecidos de Renato, de todos seus artefatos culturais favoritos (o que vai de cantos da Odisseia a participações do Clodovil no Show de Calouros), assim como de incontáveis povos e animais extintos.

O texto citado mais vezes para descrever o Renato como conservador é este aqui:

Todo mundo sabe que Cabral quando chegou aqui encontrou já Magalhães Pinto bem estabelecido (na época ainda apenas banqueiro, e não estadista). Todos ganharam em seguida drinks e guarda-chuvas promocionais da descoberta muito bem confeccionados pelo Itaú.

De imediato saíram em comitiva para conhecer nossas maravilhas inigualáveis e mundialmente famosas. A Chapada Diamantina, a pororoca, Ouro Preto, mulatas.
Cinco anos depois Tom Jobim e Villa-Lobos dariam praticamente por encerrada a cultura brasileira em plena culminação entelequial, com a estreia de sua ópera conjunta “Terra Brasilis”, apresentada uma única vez (com coro de chacretes, Getúlio Vargas, Bidu Sayão e grande elenco), com a presença de nada menos que três lojas maçônicas (com os comboios de Sorocaba e Uberlândia), na escola de padres que viria a se tornar a cidade de São Paulo, as partituras queimadas a seguir com a presença de um notário do 2º cartório da região.

Esse trecho, saído de um texto maior chamado A REDESCOBERTA DO BRASIL, apareceu primeiro na caixa de comentários do blog do Gilberto Gil, assinado apenas “Renato M.”.  Passou a circular com modificações francamente racistas e despropositadas, geralmente sem a assinatura de Renato.

De fato, de toda a produção multimídia de Renato só os seus vídeos de YouTube onde fala de mitologia e política podem ser ditos conservadores. Feitos entre 2007 e 2009 (não confundir com a vasta produção videoartística prévia e posterior, os vídeos em questão sempre mostravam Renato sem camisa num quarto cheio de livros, falando muito rápida e histericamente sobre algum “complexo figural”, como ele chamava).

De resto, de acordo com o que pude acompanhar, Renato alternava entre se dizer comunista e anarquista radical, embora raramente explicitasse os particulares da sociedade que ele idealizava. Os vários “textos extensos” que menciona nos vídeos mais antigos, até onde eu sei, não existem, são só piada. Ou são manuscritos que ele nunca mostrou de fato pra ninguém.

De fato, acho que a única empreitada teórica de Renato que consigo afirmar com alguma certeza que deve ser levada a sério (por assim dizer) é a sua famigerada Exuística. Renato não apenas tentou submeter o manifesto da Exu-ística para mais de uma revista acadêmica, sem lograr êxito na publicação, mas sabemos que ele se aproximou de pelo menos duas personalidades da Umbanda de Belo Horizonte, assim como de ao menos uma figura do meio editorial local, para buscar a publicação do panfleto que ele diria que tinha certeza que ia bombar tanto no meio comercial quanto no acadêmico.

O manifesto acabou publicado num blog de poesia, não se sabe se pelo próprio Renato ou se por um acólito, e é certamente um dos textos mais complexos e abstratos de sua autoria. O texto começa, e eu cito:

“Exu não é nem o número zero e nem o número um. Exu é o princípio de individuação a partir da comunicação, da abertura do sinal (e não de seu fechamento). Laroiê. Pede-se, respeitosamente, passagem. Se a Hermenêutica nasce em homenagem a Hermes, em seus desdobramentos dialógicos (que nunca chegam a sair, propriamente, dos domínios do sujeito, a Exu-ística é uma heurística comunicacional que parte da eminente comunicabilidade de todas as coisas e da condição energética e material de toda comunicação.”

Eu não teria competência para recuperar todo o argumento de Renato e nem as diversas fontes e vozes com quem ele está dialogando. Recomendo o texto de Alessandra Godoy sobre as influências do pensamento dele (ela sabe do que está falando, eu sou só um grosseirão que no máximo manja de anime, metal e internet).

Tem gente que acha problemático o jeito que o Renato fala de Exu aqui, não sendo na época mais praticante de nenhuma fé de origem africana, pelo que falam. Eu não saberia dizer. O próprio Renato lidou com isso em alguns vídeos posteriores, como aquele em que ele descreve três encontros com manifestações de Exu e o que ele entendeu que estava em jogo em cada uma delas. Eu não conseguiria resumir esses vídeos, que é facilmente um dos cinco ou dez mais engraçados de toda a internet brasileira, mas lembro que nesse vídeo ele repete na forma de piada o argumento que ele no texto entrega com uma clareza lógica ímpar: de que qualquer pretensa manifestação de um deus malandro sempre será, necessariamente, autêntica, já que o mero ato de se passar por ele daria numa invocação da sua presença. Eu não sei dizer se ele está certo ou errado, nem nada, eu só acho bonito.

Outro exemplo gratuito:

“O Exu da comunicação não figura a transmissão entre aqui e ali num sistema fechado, mas a própria comunicabilidade entre sistemas díspares que torna qualquer de suas individuações possíveis. A comunicabilidade das coisas é a avidez da faca que comunica a si própria no corte (mas não sozinha). A palavra é um caso detido da sintaxe geral. Exu é boca e fome coletiva, a voragem que vira vórtice, redemunho que arrasta a catarata”

Os doze passos para uma ecologia da mente é um dos temas mais polêmicos.

Não adentraremos adiante no emaranhado de tretas, tenho relatos muito consistentes de que teria começado como uma piada, aquele vídeo, e só muitos anos depois, depois da experiência fracassada do Renato no ensino superior, é que ele teria pensado em fazer aquilo de verdade. Porque se tinha uma coisa que Renato levava a sério no meio de sua zoeira infinita e esparramada era que a arte era a única forma de – e eu cito – montar, modular e moldar o corpo coletivo. Os doze passos então seriam o grande projeto de sua vida, uma espécie de vídeo-manual assim enciclopédico de doze partes sobre tudo. Mas tudo-tudo mesmo. Desde economia política e química orgânica até jardinagem e culinária baiana.

Eu sei que eu falei muito, mas é que é só explicando todas essas paradas que vocês vão começar a entender. E só assim vocês vão acreditar em mim quando eu disser que ele não está morto coisíssima nenhuma.