32.

Murilo mal lembrava de ter um avô nos primeiros anos da sua vida. A família do pai sempre esteve distante na Bahia, fora os presentes que recebia da avó pelo correio, não havia nenhuma comunicação apreciável com aquele povo que Murilo havia visto em fotos, uns rostos parecidos com o seu pai, o mesmo nariz, os mesmos olhos assustados. Murilo não sabia nem o nome dos seus tios direito. Já seu avô materno passou a existir de fato na sua vida a partir dos seus seis anos e desde então passou a exercer em Murilo uma influência vasta e difusa.

Até então, Murilo mal tinha uma imagem mental do avô, mal conseguiria descrevê-lo. Tasso de Sousa Andrada. Alto e muito magro, ossudo em todas extremidades, hirsuto a ponto de quase não parecer humano. Uma figura grosseira no seu laconismo, que quase parecia não estar presente quando falava com você, não fazendo nenhuma questão de fingir que se interessava pelo que você dizia. Não se dispunha nem a jogar aquelas amenidades educadas e vazias com que as pessoas geralmente se comunicam, olhando sempre um pouquinho ao lado dos seus olhos, como se tentasse sem sucesso achar algo ao redor da sua figura que o interessasse.

A família mal o encontrava, sua mãe não fazia nenhuma questão de visitá-lo, nem mesmo em aniversários e ele tampouco fazia qualquer menção de se aproximar dos netos. Murilo percebia pelo jeito que seus pais falavam de Tasso que não devia ser uma pessoa muito normal. Apesar de ter uma situação financeira bastante confortável, os avós não tinham empregada em casa, não comemoravam aniversários, não viajavam nunca. Murilo entendia pela forma com que sua mãe comunicava esses fatos que deviam expressar alguma coisa muito torta. Ela dizia que seu pai desde os quarenta e poucos já ia trabalhar com o pijama debaixo da roupa e que em casa ela nunca viu ele usar outra coisa. Não tinha amigos na cidade, não saía de casa à noite, nunca levantou a voz de forma nenhuma, por motivo nenhum (o que não devia impedi-lo de ser muito bravo e muito cruel, Murilo pensava, pelo jeito da mãe dele descrevê-lo).

Murilo não via exatamente qual era o problema em nenhuma daquelas coisas, mas a mãe sempre fincava cada pequeno item pontiagudo do seu avô como um índice de uma índole incompreensível.

Ele juntava as informações esquisitas que recebia esporadicamente sobre o avô, tentava remontá-las num quadro mais ou menos coerente (achando melhor não expressar o seu interesse por achar que a mãe não o aprovaria). O avô e a avó não recebiam visitas e desde os anos oitenta que ele não deixava o Plano Piloto. Foi quase impossível uma vez convencê-lo a visitar um médico num hospital que ficava no Lago Sul. Quanto mais ele envelhecia mais ele fazia questão de ficar sempre ali dentro do Plano. Ele praticamente só se alimentava de frutas, abobrinha e berinjela, evitando qualquer tipo de carne e alguns derivados de animal (Murilo na época não conseguia imaginar um motivo ético para se fazer isso, então imaginava que essas restrições alimentícias engraçadas deviam se dar por um gosto excessivamente idiossincrático, como o seu, que na época quase só incluía nuggets de frango, enroladinho de salsicha, arroz branco e pizza Dom Bosco).

Uns anos atrás ele costumava andar o eixão inteiro aos domingos, do final da Asa Sul até o final da Asa Norte. Hoje em dia parece que ele caminha da trezentos e oito, lá onde ele mora, até a trezentos e dezesseis, fazendo a volta na calçada onde termina o Plano. Acordava antes das cinco da manhã todos os dias, inclusive nos finais de semana. Havia sido engenheiro e havia trabalhado na construção de Brasília, parecia desde então obcecado com o fato de que aquele lugar onde ele morava, todo aquele espaço delimitado, aqueles edifícios erguidos, as gentes vivendo neles e em torno deles, toda aquela vasta estrutura interdeterminada tinha saído  de um plano, de uma abstração que foi realizada a muito custo com concreto, ferro, vidro, aço e o trabalho duro e o sacrifício de milhares de homens e mulheres.

A sua mãe falava aquilo impostando uma voz grave, séria e muito lenta, que Murilo tentava imaginar dentro daquela figura fantasmática de que ele se lembrava ter visto uma única vez, alguns anos antes, enorme, falando coisas que ele não entendeu enquanto enxugava uma manga que ele aparentemente tinha trazido com ele e parecendo muito severo. Murilo tentava juntar aqueles retalhos numa pessoa, numa voz, mas não conseguia. Por que que alguém chegaria na casa de outra pessoa com uma manga no bolso do casaquinho marrom? No máximo ele conseguia um espantalho de avô que às vezes dava a cara nos seus sonhos, um gigante estufado de palha, desengonçado, que por fim acabava matando sem querer a sua mãe ao apertá-la contra uns entulhos (os sonhos de Murilo quase sempre se passavam em torno de destroços).